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A unha que quebrou

Tem dias em que a vida da gente parece um salão de beleza improvisado: a luz falha, o ventilador faz mais barulho do que vento, e ainda assim a gente tenta deixar tudo alinhado, cada fio, cada pedacinho de si no lugar certinho, ou pelo menos no lugar que o mundo aprendeu a chamar de “certinho”.

Eu estava assim: com todas as unhas feitas, pintadinhas do mesmo tom, uma fileira de pequenas certezas tentando segurar o caos. Aquele esmalte vermelho-sangue que me deixava com a ilusão de estar no controle, como se as coisas parassem de escapar somente porque eu tinha conseguido colorir dez pedacinhos de queratina com a mesma cor. A vida também é isso: uns truques pra gente acreditar que pode sustentar alguma ordem no meio do desmantelo cotidiano.

Mas aí, claro, uma unha quebrou.

E quando todas estão iguais, sincronizadas como um coral de igreja em domingo de festa, a que quebra vira manchete. É sempre assim: a diferença aparece no tablado aceso. Todo mundo nota. O olhar das pessoas funciona como aquele sensor de porta automática em supermercado: detecta a divergência, escancara a entrada, espera que você explique por que ousou quebrar um padrão tão bonitinho.

A unha virou assunto antes mesmo que eu tivesse coragem de olhar pra ela. E eu pensei: engraçado, né? A gente passa a vida tentando alinhar tudo: sentimentos, escolhas, afetos, sonhos. E o mundo só percebe quando um pedacinho se desalinha. É como se a perfeição fosse invisível, mas o defeito ganhasse nome, sobrenome e CPF.

Ali, naquele cotoquinho torto que restou do esmalte, eu me vi. Eu vi minhas tentativas de ser igual, de caber, de encaixar. Vi as vezes em que apareci inteira e ninguém viu, mas bastou vacilar para ser lida como falha. Como desvio. Como problema.

Coisa de unha, coisa de gente…

No dia seguinte, resolvi pintar cada unha de uma cor diferente. Um arco-íris improvisado, um carnaval de ponta de dedo que deixaria qualquer manicure de olhar conservador fazendo o sinal da cruz. Fiz não por ousadia, mas por alívio: eu queria experimentar como seria existir sem a obrigação de parecer uniforme. (Como se isso fosse possível pra uma travesti ruiva, toda tatuada, de um metro e setenta e nove!)

E de repente percebi: se uma quebrasse, eu passaria um pouco despercebida. Porque quando cada unha tem sua cor, seu ritmo, seu brilho, sua teimosia própria, não existe mais essa patrulha do idêntico. A diferença vira paisagem, não escândalo.

Fiquei com isso na cabeça o dia inteiro. Não é sobre esmalte, nunca é. É sobre a polícia do padrão que ronda nossas vidas, e sobre como a gente é ensinada desde cedo a combinar tudo para não ser alvo de comentário. A roupa, o corpo, a voz, o modo de andar, o jeito de amar, as pessoas com quem andar. Tudo precisa ser liso, alinhado, igualzinho ao esperado.

E quando é igual, basta um fiapo fora do lugar para apontarem o dedo. Mas quando cada parte da gente assume sua própria cor, quando a gente desiste desse desfile de simetria, o erro deixa de ser erro. A vida fica mais honesta, mais respirável. A gente não vive com medo de falhar, porque falhar deixa de ser um escândalo e vira só uma parte pequena da narrativa.

Pensei em mim criança, ouvindo que precisava “me comportar”, “rir baixinho”, “andar direito”. Pensei na adolescência, quando o mundo parecia um mural cheio de regras escritas com glitter e chumbo. Pensei na adulta que sou, às vezes ainda tropeçando nessa mania de pedir desculpas por existir do meu jeito.

E naquele arco-íris descascando nas pontas dos meus dedos, senti algo que talvez fosse coragem. Ou talvez fosse apenas um convite pra viver sem me polir tanto. No fundo, eu não queria mais ser coleção de unhas iguais. Queria ser diversidade ambulante, e que se quebrasse uma ou duas, ninguém viesse me lembrar que “estragou”.

Tem gente que acha que é só metáfora. Mas metáfora é jeito de dizer verdade sem arrancar a pele.

Passei a semana reparando no mundo como quem repara em esmalte. Vi pessoas tentando desesperadamente parecer iguais: iguais às amigas, iguais ao filtro do Instagram, iguais ao que disseram que é “bonito”, “correto”, “adequado”. E vi também outras, coloridas na alma, desfazendo essa necessidade de simetria com a naturalidade de quem não está disputando troféu de perfeição.

E foi aí que entendi o que aquelas unhas queriam me dizer: Quando tudo está igual, qualquer rachadura vira tragédia. Quando tudo é diverso, rachaduras fazem parte do relevo.

Talvez viver seja escolher entre buscar um padrão que nos aprisiona ou acolher um mosaico que nos liberta. Eu, particularmente, estou cansada de gente que só vê a unha quebrada, mas nunca vê a mão inteira. Cansada de quem detecta falha antes de reconhecer esforço. Cansada de quem lê o erro como identidade, mas a vitória como acaso.

Se a vida fosse um salão de beleza, talvez eu fosse aquela manicure que conversa demais, ri alto, conta casos que ninguém pediu. Aquela que não combina cores porque sabe que o mundo não é paleta pronta. Aquela que insiste que beleza não está em igualar, está em assumir o que se é, inclusive o que descasca.

E nessa reflexão meio torta, meio debochada, meio sentimental, percebo que eu quero mesmo é viver como quem pinta cada unha de um jeito. (E pinto mesmo!) Não pra causar, não pra ser diferente, não pra chamar atenção, mas pra não me perder no esforço cansativo de ser uma versão sem falhas de mim mesma.

Porque a verdade é simples, quase boba: Quando somos todas iguais, qualquer tropeço denuncia. Quando somos múltiplas, os tropeços viram só passos. E talvez seja isso que eu queria te dizer hoje. Que você pode sim quebrar uma unha, ou todas. Pode borrar a vida. Pode descascar nos cantos. Pode falhar no meio da festa.

Só não pode acreditar que o valor da sua existência está no brilho impecável do esmalte. A vida é mais bonita quando a gente para de buscar simetria e começa a buscar sentido.

E, sinceramente? Se meu esmalte descascar de novo amanhã, que descasque. Sou feita de cores demais pra caber na caixinha das unhas perfeitas.

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Fonte: saibamais.jor.br

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