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A maré amanheceu torta

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A maré amanheceu torta

Não era mar de verdade, era o chão da cozinha que respirava como bicho ferido, ondulando sob meus pés como mar bravio, enquanto eu procurava uma caneca no guarda-louça da pia. O leite fervia no fogareiro como se me olhasse torto, encolhida num bolor de espuma. “Você ainda vai derramar tudo”, parecia dizer. E derramei. Sempre derramo.

Fiquei ali, parada, observando aquele pequeno desastre doméstico como quem contempla um abismo íntimo. O leite escorrendo pelo fogão tinha o mesmo movimento das palavras que eu não dava conta de segurar. Tantas. Fermentadas. Ácidas. Nenhuma delas me servia.

A cidade, lá fora, estava com sua cara de sempre: pessoas correndo de um lado pro outro, mototáxis e entregadores e meninos-de-menor-sem-habilitação-sobre-motos-com-canos-envenenados riscando as ruas como vaga-lumes acelerados.

Mas dentro de mim havia uma ventania que ninguém via, um vento que arrancava telhas, que amassava portas, que me jogava contra as paredes do próprio corpo. Bastava o som do celular vibrando para que meu peito se esfarelasse. Eu, que sempre tentei parecer firme, carregava rachaduras suficientes para erguer uma catedral inteira.

Foi na calçada da escola, encostada no muro esperando um mototáxi, que senti meu nome, meu eu, minha existência escapar de mim mais uma vez. Era como se cada letra tivesse se soltado, ganhando vida, fugindo pelas ruas. Meus dedos tremiam tanto que quase deixei cair minha sacola cheia de provas pra corrigir, porém o que realmente caiu foi a certeza, a suficiência, o alicerce que me sustenta, a concretude, aquela que a gente guarda como santinho dobrado na carteira. Ela se espatifou como vidro fino.

Uma colega de trabalho que também esperava seu transporte percebeu antes de eu perceber. Tocou meu ombro com a palma quente e franca de quem já atravessou desertos sem mapa.

– Sente aqui, minha filha – ela disse, me conduzindo para um banco na pracinha em frente à escola, sem me perguntar nada. E eu sentei. Porque às vezes sentar é tudo que uma pessoa consegue fazer.

Chorei sem barulho. O sol se espreguiçava sobre as telhas, indiferente. Mas o toque da mulher, os olhos miúdos e atentos, seguravam-me como se puxassem meu corpo do fundo de um rio. Era um gesto pequeno, quase sem brilho, mas doía bonito, aquele tipo de dor que abre frestas.

Naquela noite, tentei arrumar a casa dentro de mim. Não com vassouras nem panos, mas com o cuidado de dizer meu desespero em voz alta para uma amiga, que chegou com cuscuz, dois abraços e uma coragem emprestada. Ela não me consertou; apenas guardou meus pedaços no colo, como quem recolhe sementes espalhadas pelo vento.

– Ninguém floresce sozinho – disse. E a frase ficou ecoando, não como lição, mas como tambor.

Dias depois, algo mudou. O chão ainda ondulava, sim, mas já não parecia um bicho prestes a me engolir. O leite continuava derramando de vez em quando, mas eu já não o via como fracasso, era só leite e suas próprias travessuras. E eu, que sempre quis ser muralha, descobri que ter frestas e rachaduras são possibilidades de flores brotarem e que encontrar pontes doía menos.

A inquietude ainda me visitava, claro, mascando minhas certezas com dentes miúdos, transformando minhas noites em dias claros. Mas, agora, quando ela batia à porta, eu deixava entrar e oferecia um copo d’água e um ansiolítico. Porque aprendi que algumas tempestades não se vencem: atravessam-se. E atravessá-las fica menos pesado quando alguém segura a lanterna, mesmo que por instantes.

No último domingo, saí cedo. O mar, o verdadeiro, estava manso, como se tivesse passado a noite inteira me esperando. Sentei na areia ainda fria, sentindo o vento me chamar pelo nome que eu achava ter perdido. As ondas vinham e iam, teimosas, mas cada uma parecia dizer: “respira”.

E eu respirei.

Pela primeira vez em muito tempo, não senti que precisava fingir solidez. O corpo frágil, as partes bambas, o coração que insiste em tropeçar, tudo isso era meu. E era suficiente.

Ali, naquela beira d’água, percebi que não se trata de ser forte, mas de ser possível. E eu, naquela manhã, era possível. Inteira no meu jeito torto. Sustentada por mãos que me resgataram antes mesmo que eu conseguisse pedir socorro.

O mar não curou nada. Mas me devolveu, aos poucos, a vontade de ficar.

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Fonte: saibamais.jor.br

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