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Pensamento negro-dissidente guia ciclo de oficinas em Natal

Como imaginar vida fora do mundo que nos violenta? Como escapar de estruturas que atravessam o corpo, a linguagem, os afetos e a própria noção de humanidade? Estas questões compõem a base do projeto “Abandonar o mapa colonial: o pensamento negro-dissidente”, iniciativa produzida pelas pesquisadoras Agnes de Oliveira e Sanzia Pinheiro e que vem movimentando o campo dos debates sobre raça, gênero, colonialidade e emancipação em Natal.

As atividades seguem ainda em 2025 com ciclos conduzidos por duas das mais importantes referências da produção negra-dissidente. Castiel Vitorino Brasileiro está com inscrições abertas para os encontros dos dias 11, 12 e 13 de dezembro, quando realizará práticas do “Método Elementar”. Já Jota Mombaça concluiu, no início de novembro (6, 7 e 8), o ciclo “Para respirar sob a terra”, no qual mobilizou experimentações que envolveram corpo e arte.

O ciclo formativo reúne oficinas, práticas coletivas e falas públicas que emergem dos estudos de obras que tensionam os limites da política, das artes e dos modos de existência. Entre as referências centrais, estão Castiel Vitorino Brasileiro, curandeira, artista visual, pensadora e travesti e Jota Mombaça, escritora, performer e intelectual potiguar com expressiva atuação internacional.

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A escolha de nomes dissidentes, que pensam a partir de experiências vividas e não apenas por meio da academia, comunica o lugar político do projeto: fazer circular saberes que nascem dos corpos que o Estado tenta controlar e domesticar. Saber, para o projeto, não é apenas um campo abstrato, é prática, gesto, sensibilidade e conflito.

De um estudo na Vila de Ponta Negra ao nascimento de um ciclo formativo

O termo que dá nome à iniciativa “abandonar o mapa colonial” ,surgiu da obra “Quando o sol aqui não mais brilhar: a falência da negritude”, de Castiel Vitorino Brasileiro. A pesquisadora e produtora Sanzia Pinheiro, que desenvolveu sua tese doutoral sobre a artista, organizou encontros de estudo na Tapiocaria da Vó, espaço comunitário na Vila de Ponta Negra, junto a Agnes e outras pessoas racializadas e dissidentes.

O que começou como uma roda de leitura transformou-se numa plataforma de experiências que hoje extrapola a discussão teórica e investe em experimentar coletivamente formas de vida que escapem da lógica colonial, entendida não como passado, mas como tecnologia que ainda estrutura o Estado, o Capital, o gênero e a racialidade.

“Abandonar não é virar as costas para o terror do cotidiano”, explica Agnes. “É recusar que nosso horizonte seja a inclusão nesse mundo que nos nega, captura e nos dá como destino a violência.”

A radicalidade do projeto está em afirmar que o poder colonial não age apenas por instituições, armas ou leis; ele opera molecularmente: regula órgãos, controla sensações, define o que pode ser visto, ouvido e pensado. Agnes define esse regime como extrativismo sensível, um controle das percepções, emoções e cognições.

Por isso, corpos dissidentes que guincham, cantam diferente, criam linguagens estranhas, desobedecem ao gênero, performam existências ilegíveis, tornam-se ameaça. Suas práticas não são apenas estéticas: são políticas e epistêmicas. Criam frestas por onde o mundo pode ser recusado e reinventado.

Nas palavras de Agnes, “quando esses corpos produzem socialidades opacas ao olho do poder, outro mundo deixa de ser imaginação e passa a ser prática”.

Esse entendimento situa o projeto próximo de correntes abolicionistas, anticoloniais e anticapitalistas que defendem que não há emancipação possível dentro das regras impostas pelo Estado, pelo gênero, pelo dinheiro e pela racialidade. A libertação não seria reforma do mundo existente, mas criação de outro.

A produção destaca que isso não representa apenas “interesse intelectual”, mas reconhecimento mútuo entre quem fala e quem ouve. Jota retorna à sua cidade natal em outro momento histórico, atravessada por novas pesquisas e por transformações pessoais e políticas.

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As oficinas não se limitaram a diálogo teórico. Foram momentos de práticas corporais, exercícios de escrita, experiências coletivas e compartilhamento de problemas comuns. Mais do que aprender com Jota, o público produziu com ela.

Outro gesto contundente do projeto é a parceria com a Casixtranha e a comunidade Ballroom de Natal. Não como “público”, mas como co-criação de pensamento. A Ballroom, movimento global que cria espaços festivos de autonomia negra e trans ,é vista pela produção como arquivo vivo de práticas que redistribuem a violência e produz intimidades insurgentes.

O projeto se recusa a medir impacto por números, alcance, público-alvo ou escala. A aposta está nas alquimias imprevisíveis do encontro, no gesto que se repete e cria linguagem, nas alianças improváveis, na intimidade como política. Talvez a maior recusa seja justamente não oferecer ao Estado e ao Capital um resultado mensurável. Não cabe em relatório, edital ou métrica governamental.

A equipe planeja transformar a experiência em uma primeira edição. Há o desejo de novos ciclos para 2026, fortalecendo uma rede que une dissidência de gênero, pensamento negro, práticas artísticas, espiritualidade anticolonial, produção de conhecimento coletivo.

O projeto é uma realização da Fundação José Augusto (FJA), em articulação com a Secretaria de Estado da Cultura e o Governo do Rio Grande do Norte, no âmbito do Sistema Nacional de Cultura. As ações são financiadas pela Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura, com recursos do Ministério da Cultura e do Governo Federal.



Fonte: saibamais.jor.br

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