Por Aparecida Fernandes, filha de Mãe Luiza | Professora do IFRN.
“Minha residência foi invadida. Tenho cinco filhos: quatro homens e uma menina, de cinco anos. Meu filho mais velho possui autismo. No sábado de madrugada, era uma hora da manhã, entraram na minha casa, fizeram a bagunça todinha na minha casa. Meu filho de dezesseis anos foi acordado, botaram um fuzil na cabeça do meu filho! No meu filho com autismo também! A minha filha de cinco anos está tão traumatizada, que todo dia ela liga pro meu trabalho – eu trabalho, eu sou uma trabalhadora! – ela pergunta “mamãe, a polícia vem matar a gente?” Porque foi o que eles falaram dentro da minha casa! Foram cinco vezes que a polícia entrou na minha casa! E na quarta vez em que entraram, pegaram o meu filho de 19 anos e só faltaram matar o meu filho na minha frente! Botaram saco plástico na cabeça do meu filho, dizendo que iam estuprá-lo, e isso na minha frente, na frente do meu filho com autismo, da minha filha de cinco anos! E a todo tempo dizendo que se a gente falasse alguma coisa, eles iam nos matar.
Eu não estou aqui pra defender ninguém, eu só quero a minha paz!
Faz apenas quatro meses só que consegui comprar a minha casa. Eu vou-me embora! Porque não aguento nem entrar em minha casa, que eu fico me lembrando daquelas cenas!
Da outra vez que eles chegaram lá, eu perguntei: vocês têm mandado agora pra entrar na minha casa?’ Sabe o que ele disse? – me desculpem a palavra! – ‘Você quer mandado, sua rapariga?’ E foram chutando o portão da minha casa, quebraram o portão da minha casa, quebraram a minha porta. E até as misturas da geladeira, que eu passo um mês pra ganhar um salário mínimo pra dar comida a meus filhos, levaram! Levaram as carnes da minha geladeira! É imoral uma coisa dessa! Não estou aqui contando nenhuma mentira não, estou contando a verdade. Só Deus sabe o que passei! Eu não aguento ir na minha casa, não aguento, só me lembro do que passei com meus filhos! A todo tempo eles dizendo que iam matar meus filhos!
No sábado, eu tive que ir no posto pra tomar comprimido pra dormir, porque eu não tô conseguindo dormir, eu não tô conseguindo trabalhar direito. A última vez que invadiram a minha casa, não tinha ninguém. Eu estava no meu trabalho e a minha vizinha ligou: ‘estão invadindo sua casa de novo!’ E eu: ‘De novo?’ Eu fui na minha casa, estava portão quebrado, porta quebrada! Aí dessa vez eu fui dar parte, fui em todo canto, na corregedoria, só faltou eu chamar a imprensa, porque isso não é coisa que se faça não. Eu sou uma trabalhadora, não vivo fazendo nada de errado não pra estar acontecendo uma coisa dessa, não! Ainda mais eu com filho doente! Eu com uma filha de cinco anos e a todo momento eles dizendo ali que iam matar a minha família!
Quando eles invadiram de madrugada e foram embora, disseram: ‘fiquem aí, se levantar qualquer um, a gente mete bala’. Pera aí… Se quer pegar bandido, pegue bandido, não trabalhador! Eu trabalho o mês todinho pra ganhar o meu sustento! Como eu já disse, faz quatro meses que consegui comprar a minha casa, porque consegui aposentar o meu filho. Agora eu não vou ter nem o prazer de morar na minha casa! Porque eu não aguento estar dentro dela! Porque quando entro, eu me lembro dos horrores que passei ali dentro.
Agradeço a oportunidade de falar e espero que a situação melhore, porque Mãe Luiza tem gente de bem!”
Não, o que você acabou de ler não é relato de personagem de “Tropa de Elite”.
Este é o desabafo de uma mulher trabalhadora, moradora do bairro de Mãe Luiza, periferia de Natal. Nessa terça, 16/12/2025, eu, cria de Mãe Luiza, e o vereador Daniel Valença e equipe estivemos em uma reunião na comunidade, que fora provocada por membros do Conselho Comunitário e algumas lideranças. A pauta: as ações ilícitas de policiais em operações realizadas no bairro. Para esta reunião foram convidados e fizeram-se presentes o Delegado da Polícia Civil e dois Comandantes da Polícia Militar. Ouviram, assim como todos/as os/as que se fizeram presentes, relatos de violações de toda ordem. Abordagens arbitrárias, autoritárias; agressões – até o cúmulo de provocar extravio de material de trabalho de moradores (“Retiraram a mercadoria do meu sobrinho, um trabalhador, que faz frete, e jogaram toda no chão”; “o rapaz, um trabalhador, meu amigo, quebrou o celular todo porque o policial queria obrigar-lhe a abrir para ele ver, e o rapaz resistiu, dizendo que ele não tinha direito de fazer isso sem mandado. O policial disse que se não desse acesso ao celular, iria quebrá-lo e o rapaz quebrou o celular todinho”; “Tenho uma pequena lanchonete na minha casa e numa das operações, jogaram uma bomba na minha área!” ); invasão de domicílios sem mandado, desrespeito aos moradores – sejam idosos, adolescentes, mulheres (“Perguntaram se havia alguém, e eu disse que apenas eu e os meus, e mesmo assim, o policial entrou na minha casa sem meu consentimento!”; “Eu estava me trocando, vestindo minha roupa, quando fui surpreendida com a presença de um policial dentro da minha casa!”; “Minha sogra é acamada, estava só a minha filha com ela, e ela me liga desesperada que um policial invadiu a nossa casa.”; “Eu saio 4h da manhã para comprar salgado para vender, que é meu sustento. Aí um policial me aborda e manda ir pra casa me chamando dos piores palavrões! Pra que isso?”; “Eu tenho uma pequena vila e os inquilinos estão saindo, com medo, porque sempre tem um policial invadindo, revistando sem consentimento, quebraram janelas”).
Em português nu e cru, os detalhes dos relatos evidenciam como o modus operandi das operações e abordagens policiais só muda de endereço, mas permanece o mesmo: a periferia, as pessoas pretas e pobres que a habitam continuam sendo julgadas a priori por sua condição social e sua cor, como criminosos em potencial. O nível das violências empreendidas estampa que a farda policial continua sendo o passaporte para exercício de arbitrariedades contra vulneráveis.
Nesse cenário, a comunidade de Mãe Luiza vê-se acuada e ameaçada por facções que não se distinguem, porque essas arbitrariedades cometidas colocam esses policiais no mesmo patamar dos criminosos sem farda.
Sabe-se que quando o poder público falha, abre-se espaço para o crime. Uma liderança inclusive lembrou que município e estado na comunidade não entregam nada e que até para a reforma da Escola Estadual Alfredo Pegado sair, tiveram que entrar na justiça. Quando a presença do poder público continua precária, fazendo-se apenas com a força policial, abre-se também a cortina para as violações de direitos humanos que estão aqui relatadas.
O vereador Daniel Valença lembrou de que estivera na inauguração da sede da Polícia Científica e da “orientação clara do Secretário de Segurança de que não poderia acontecer aqui o que aconteceu no Rio de Janeiro. Da polícia fazer operação dizendo que está combatendo o crime, mas não está, está combatendo pessoas pobres.” Daniel ressaltou que “o governo avançou na Segurança Pública, mas falta avançar muito na humanização e de como se faz para a população ter confiança na polícia”.
As autoridades policiais presentes à reunião rechaçaram as atitudes dos PMs. Afirmaram que é preciso a comunidade denunciar para que se apurem os mal-feitos.
No entanto, sabemos, e isso falei na reunião, que é preciso de uma polícia em outros moldes, uma polícia comunitária. Formação contínua em Direitos Humanos e Realidade Brasileira é fundamental para desconstruir os preconceitos que moldam as ações de grande parte de policiais que atuam nas comunidades. É um processo longo, dado o histórico de um país que cunhou um tipo de militarização para agir contra pobres e pretos/as (mesmo esse policial sendo trabalhador e preto!). Mas é necessário começar.
No que toca ao combate ao crime, não ocupar o território com inteligência e violar os direitos dos moradores não é um bom caminho. O caso de Mãe Luiza e das demais periferias da cidade requer uma ampla mobilização que envolva as polícias, o Ministério Público, o Governo do Estado, as entidades de Direitos Humanos, as Universidades para que se pense a Segurança pública em termos mais amplos e fomentem-se políticas públicas de curto, médio e longo prazos.
Mãe Luiza já faz muito – tantas idealizações e projetos sociais – de esportes, cultura, lazer, educação – se devem ao protagonismo dos moradores, de suas entidades, especialmente da Igreja Católica do bairro.
O resultado que se almeja de tudo é o que diz a voz dos moradores e das moradoras: “Eu quero viver o resto da minha vida aqui e viver com dignidade, não me escondendo de bala. Eu só quero a minha paz!”.
Fonte: saibamais.jor.br



