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Não bastavam os homens?

A festa fervia num desses salões improvisados que a cidade chama de “espaço de eventos”, mas que, no fundo, é apenas uma praça ornamentada com luzes coloridas, caixas de som potentes e uma alegria meio ensaiada. O suor coletivo misturava perfume doce, cerveja barata e música alta demais. Eu havia demorado a escolher a roupa: um vestido justo, vermelho bordô, decote discreto, salto médio. Nada tão gritante, nem provocativo. (Não para meus padrões). Apenas eu. Apenas o meu corpo existindo no mundo, tentando caber numa noite comum.

Foi perto do balcão, enquanto eu esperava o troco de uma bebida, que senti a mão. Primeiro, pensei ser empurrão de gente bêbada. Festa lotada, corpos se cruzando, acidentes acontecem. Mas a mão não saiu. Deslizou. Demorou-se. Apertou de leve, como quem testa um objeto antes de comprar. Virei o rosto com susto e encontrei um sorriso feminino, largo, confiante, invasivo.

– Nossa, você é linda! – ela disse, sem pedir licença.

Linda. A palavra veio acompanhada de um olhar que não me via inteira. Percorreu meu corpo como um scanner apressado: peito, quadril, pernas. Não perguntou meu nome. Não perguntou se eu queria conversar. Apenas afirmou algo sobre mim, como se eu fosse um detalhe decorativo da festa.

Tentei recuar, mas ela avançou meio passo, apoiando o braço no balcão, fechando a passagem. O corpo dela exalava álcool e segurança, essa mistura perigosa que faz algumas pessoas acreditarem que tudo lhes é permitido.

– Sempre tive curiosidade. E continuou… – n Deve ser incrível.

Incrível. Não perguntou o quê. Não precisava. Eu sabia. O “incrível” era o meu corpo, reduzido a uma fantasia erótica que ela podia tocar, comentar, desejar sem culpa. Meu estômago revirou, não porque eu seja misógina, ou tenha “nojo de mulher”. Senti o rosto esquentar, não de vaidade, mas de constrangimento. Olhei em volta buscando socorro: amigos conversando, gente rindo, ninguém prestando atenção naquela cena mínima e, para mim, imensa.

– Olha, eu não gosto… – comecei, tentando manter a voz firme.

Ela riu, um riso curto, debochado, como quem ouve uma criança dizer “não mexe”. A mão voltou, agora no meu braço, deslizando até o ombro.

– Relaxa, amiga. É só elogio. Mulher pode, né?

Pode. Essa palavra ecoou dentro de mim como um tapa. Pode porque é mulher. Pode porque não é homem. Pode porque, supostamente, eu deveria me sentir menos ameaçada, mais confortável, talvez. Pode porque, na lógica torta daquela festa, o assédio feminino não conta. Não dói. Não marca. Não existe.

Mas existia. Existia no meu corpo enrijecido, no sorriso forçado que tentei sustentar, na vontade urgente de desaparecer.

Afastei o braço com mais força do que pretendia. O copo quase caiu. Ela fez cara de surpresa, ofendida, como se eu tivesse quebrado um acordo invisível.

– Nossa, que grossa – disse. – Pensei que você fosse mais… aberta.

Aberta. A palavra caiu pesada, cheia de insinuação. Aberta ao quê? À ideia de que meu corpo está sempre disponível? À fantasia alheia? À noção de que travestis existem para satisfazer desejos que não cabem na luz do dia?

Respirei fundo. Expliquei, como quem se defende num tribunal improvisado, que eu era heterossexual, que não me sentia confortável, que respeito é básico. Enquanto eu falava, percebia nos olhos dela um misto de incredulidade e riso contido, como se aquilo tudo fosse uma performance exagerada da minha parte.

– Mas você sabe que tem travesti que gosta, né? – respondeu, erguendo as sobrancelhas… Travesti bi, lésbica, de tudo quanto é jeito.

Eu sabia. Claro que sabia. Sabia melhor do que ela. Sabia porque convivo, porque escuto, porque partilho histórias. Sabia porque nossas existências são múltiplas, diversas, complexas. Mas o que ela não sabia, ou fingia não saber, é que diversidade não é sinônimo de disponibilidade. Que o fato de algumas gostarem não me obriga a gostar. Que identidade de gênero não determina orientação sexual. Que meu “não” não precisava de justificativa acadêmica ou militante para ser válido.

Afastei-me, finalmente. Caminhei para fora do galpão, o som da música ficando abafado, como se alguém tivesse colocado algodão nos meus ouvidos. Lá fora, o ar da noite parecia mais pesado do que deveria. Sentei num degrau, tentando organizar o que sentia: raiva, vergonha, cansaço. Um cansaço antigo, acumulado, desses que não passam com uma boa noite de sono.

Por anos, aprendi a me proteger dos homens. Dos olhares que despem, das piadas que cortam, das mãos que avançam. Desenvolvi um radar afinado, uma postura de defesa permanente. Sei atravessar ruas, identificar riscos, responder com firmeza quando necessário. Sei, sobretudo, que muitos homens veem o corpo travesti como território sem lei.

O que eu não esperava, ou talvez fingisse não esperar, era precisar me defender também das mulheres.

Há um imaginário social que coloca o feminino sempre do lado da vítima, nunca do agressor. Como se mulheres fossem, por natureza, incapazes de violentar, constranger, objetificar. Esse imaginário é confortável, mas falso. E perigoso. Porque invisibiliza experiências como a minha. Porque transforma o assédio em “elogio”, a invasão em “curiosidade”, o desrespeito em “brincadeira”.

O corpo travesti, historicamente, foi empurrado para o lugar do espetáculo. Do exótico. Do que se olha, comenta, toca. Um corpo público, nunca íntimo. Um corpo que, para muitos, não pertence a si mesmo. Homens se sentem autorizados a desejar e dominar. Mulheres, algumas, sentem-se autorizadas a experimentar, como quem prova um sabor diferente, sem compromisso ético.

Há, nessa lógica, uma falsa ideia de aliança: “somos todas mulheres”, dizem algumas. Mas essa irmandade se desfaz no primeiro toque sem consentimento, na primeira piada, no primeiro olhar que reduz. Ser mulher não apaga privilégios. Ser mulher não impede a reprodução de violências. E ser travesti não me coloca automaticamente no papel de objeto pedagógico ou sexual para ninguém.

Enquanto eu respirava naquele degrau, pensava em quantas vezes engoli situações parecidas, minimizando-as. “Pelo menos não foi homem”, eu mesma já disse, tentando consolar meu medo. Como se o gênero de quem assedia pudesse transformar a experiência em algo menos violento. Como se meu desconforto precisasse ser comparado para ser validado.

Não precisava. Não precisa.

O que aconteceu naquela festa não foi um mal-entendido. Foi assédio. Foi a repetição de uma lógica que atravessa nossos corpos todos os dias: a de que travestis existem para o desejo do outro, não para o próprio desejo. A de que nossa sexualidade é sempre excessiva, confusa, disponível. A de que dizer “não” é um capricho, não um direito.

Voltei para dentro da festa algum tempo depois, mas já não era a mesma. Nunca somos. Cruzei novamente com a mulher, que agora me evitava, talvez ressentida por eu não ter correspondido à fantasia que ela havia criado. Sorri de canto. Não por educação, mas por sobrevivência. A festa continuou, a música seguiu alta, os copos se encheram e esvaziaram. A vida, indiferente, seguiu seu curso.

Mas a pergunta martelava em mim, insistente, incômoda, necessária:

Não bastavam os homens?

Não bastava o assédio cotidiano, a violência estatística, o medo constante? Era preciso também lidar com a objetificação mascarada de empatia, vinda de quem deveria, ao menos, compreender o peso de ter um corpo lido como público?

Talvez o problema nunca tenha sido apenas quem assedia, mas a naturalização do assédio quando o corpo alvo é o nosso. Talvez a grande tarefa seja essa: reaprender a olhar travestis como sujeitos completos, com desejos próprios, limites claros e o direito inegociável de existir sem serem tocadas, comentadas ou testadas.

Naquela noite, eu fui para casa mais cedo. Tirei o vestido, o salto, a maquiagem. Fiquei diante do espelho por alguns segundos, reconhecendo em mim não um corpo disponível, mas um corpo cansado e digno. Um corpo que merece respeito, na festa, na rua, na vida.

E, silenciosamente, prometi a mim mesma não normalizar mais nenhuma violência, venha ela de onde vier. Porque não, não bastavam os homens. E não precisamos aceitar mais nada além do respeito.

Fonte: saibamais.jor.br

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