Do banho público das mulheres à lavagem de alma das vereadoras
Por Ciclamio Leite Barreto*
Tive um sonho esperançoso.
Em meio ao pesadelo cotidiano de notícias sobre quatro mulheres mortas por dia no Brasil, sonhei com um ato de resistência poético e urgente nas ruas de Natal. Certamente, os protestos das mulheres que se disseminaram pelo país no último domingo (7.dez.), tomando as ruas de várias cidades em um movimento nacional de mobilizações, denunciando a escalada do feminicídio e reafirmando a urgência de enfrentar todas as formas de violência de gênero (Cf. ebc1), podem ter aguçado minhas sinapses, já bastante familiarizadas com essa tragédia nacional, e estas então resolveram agir envolvendo meus neurônios a fim de mostrar um caminho de resistência onírico . Neste sonho, mulheres ocupavam espaços estratégicos nas quatro zonas da cidade — Leste, Norte, Oeste e Sul — em banhos públicos coletivos. Caminhões do corpo de bombeiros e caminhões-pipa lançavam jatos d’água sobre elas, que trajavam biquínis, maiôs e que tais, e se banhavam sob o sol potiguar, enquanto cantavam, declamavam poesias e repetiam em uníssono a leitura de trechos comentados da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) e da Lei Maria da Penha (LMP), feita por uma delas usando microfone e altofalantes.
A água que caía sobre aqueles corpos era mais que higiene: era purificação simbólica, limpeza de uma violência que mancha a sociedade brasileira há gerações. Um dos locais escolhidos para esse ritual de resistência era justamente em frente à Câmara Municipal de Natal. Ali, diante das vereadoras que assistiam da varanda, a performance ganhava seu sentido pleno.
O pesadelo que nos mantém acordadas
Mas antes de voltar ao sonho, precisamos olhar para a realidade. Os números são assombrosos.
No Brasil, a Justiça julgou 10.991 processos de feminicídio em 2024 cnj, o maior número desde que os registros começaram em 2020. Foram 1.450 feminicídios em 2024, além de 71.892 casos de estupro de mulheres ebc3 — o equivalente a 196 estupros por dia. 832 mil medidas protetivas foram solicitadas em 2024 cnj, mas uma em cada cinco foi descumprida pelos agressores mprs.
No Rio Grande do Norte, a situação é ainda mais alarmante. O número de tentativas de feminicídio cresceu 71,3% em 2024, em comparação com 2023 natalemfoco — quase quatro vezes mais que a média nacional. Foram 982 casos de lesão corporal dolosa contra mulheres no primeiro semestre de 2025, um aumento de 12,7% pontanegranews. Entre 2013 e 2023, mais de mil mulheres foram vítimas de feminicídio no Rio Grande do Norte, sendo 80% delas negras gazetadigital; acordacidade.
29% das mulheres potiguares já sofreram algum tipo de violência doméstica ou familiar provocada por um homem senado, e 69% afirmam que uma amiga, familiar ou conhecida já sofreu esse tipo de violência senado. A cada 15 segundos, uma mulher é espancada no Brasil, mas diferentemente do caso recente que chocou Natal — quando um homem desferiu mais de 60 socos contra sua companheira dentro de um elevador —, a maioria das agressões acontece em áreas isoladas, longe das câmeras.
Como se não bastasse, a Câmara Municipal de Natal decidiu manter na terça-feira, 9 de dezembro de 2025, os vetos feitos pelo prefeito de Natal, Paulinho Freire (União), a legislações de proteção às mulheres saibamais, incluindo a Lei Juliana Soares, cuja aprovação se deu por unanimidade em 26 de agosto de 2025 saibamais. As manutenções foram alvo de críticas da vereadora Samanda Alves (PT), autora de algumas dessas propostas.
A água que lava, a lei que protege
No meu sonho, enquanto as mulheres se banhavam sob os jatos d’água, uma delas lia em alto e bom som os artigos da Lei Maria da Penha. Criada em 2006, esta legislação é composta de 46 artigos distribuídos em sete títulos imp e é considerada pela ONU uma das três leis mais avançadas do mundo imp no combate à violência doméstica.
A lei define todas as formas de violência — física, psicológica, sexual, patrimonial e moral imp — e institui medidas protetivas de urgência que podem ser demandadas já no atendimento policial e ordenadas pelo juiz em até 48 horas imp. Entre essas medidas estão o afastamento do agressor, a proibição de aproximação, a suspensão de visitas e a prestação de alimentos provisórios.
Mas a Lei Maria da Penha é mais que punição. Ela tem, acima de tudo, caráter preventivo e educativo, visando promover uma mudança na cultura projuris. Prevê a criação de políticas públicas, delegacias especializadas, casas de acolhimento e programas educacionais com perspectiva de gênero.
Ainda assim, 67% das mulheres potiguares conhecem pouco sobre a Lei Maria da Penha senado, e muitas acreditam que ela protege apenas parcialmente. Pior: no Rio Grande do Norte existem apenas 12 delegacias especializadas para atendimento às mulheres em mais de 160 municípios gazetadigital; acordacidade.
As mensagens contundentes da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Lei Maria da Penha
Quando as mulheres do meu sonho liam e repetiam em voz alta a Declaração Universal dos Direitos Humanos durante o banho público de resistência, elas não estavam citando um documento abstrato. Estavam reivindicando direitos concretos e urgentes: o direito à vida (artigo 3º) negado pelos 1.450 feminicídios de 2024; o direito à segurança pessoal violado em 196 estupros diários; o direito a não sofrer tortura nem tratamentos cruéis (artigo 5º) violado em cada agressão sistemática; o direito à igualdade perante a lei (artigo 7º) que exige proteção estatal efetiva, não apenas leis no papel. Podem ainda ser invocados em defesa da mulher os artigos 8 (Direito a Recurso Judicial Efetivo); 9 (Proibição de Prisão, Detenção ou Exílio Arbitrários); 12 (Proteção à Privacidade, Família, Domicílio e Honra); e 16 (Igualdade no Casamento).
A DUDH, mesmo sem mencionar explicitamente as mulheres em cada artigo (já que foi criada em 1948, antes do desenvolvimento da terminologia de Violência de Gênero), é um instrumento poderoso de defesa porque afirma o princípio fundamental: todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Violência de gênero é negação dessa dignidade, dessa igualdade, dessa liberdade.
Os artigos da DUDH são universais — e é justamente por isso que são aplicáveis à defesa das mulheres. A violência de gênero é uma violação aos direitos humanos fundamentais.
Quando outra mulher lia em voz alta e amplificada a Lei Maria da Penha atrás dos jatos d’água, sua voz ecoava como um grito de resistência amadurecido. A repetição em uníssono de cada frase pelo coletivo de mulheres no banho público amplificava ainda mais esse grito. Esta lei, considerada pela ONU uma das três mais avançadas do mundo no combate à violência doméstica, não é apenas um instrumento punitivo — é uma declaração de que mulheres brasileiras não aceitarão mais viver sob o jugo do medo.
A Lei nº 11.340/2006 (LMP) reconhece todas as formas de violência — física, psicológica, sexual, patrimonial e moral — porque compreende que agressão não é apenas o soco que deixa marca visível, mas também a humilhação que destrói a autoestima, o controle financeiro que aprisiona, a ameaça que paralisa. Ela institui medidas protetivas de urgência que podem salvar vidas em 48 horas: afastamento do agressor, proibição de aproximação, proteção imediata.
Mas a LMP vai além: ela tem caráter preventivo e educativo, visando promover uma mudança na cultura projuris. Exige do Estado a criação de políticas públicas, delegacias especializadas, casas de acolhimento e programas educacionais que transformem a cultura machista desde a raiz. Ela diz: não basta punir o agressor, é preciso educar a sociedade inteira para que novos agressores não sejam formados.
No entanto, de que adianta uma lei avançada se 67% das mulheres potiguares a conhecem apenas superficialmente? De que serve a proteção no papel se uma em cada cinco medidas protetivas é descumprida? Se existem apenas 12 delegacias especializadas para mais de 160 municípios do Rio Grande do Norte? A Lei Maria da Penha existe, mas precisa sair do texto legal e entrar na vida real — nas delegacias, nas escolas, nas conversas familiares, na consciência coletiva. Urge, pois, uma popularização acessível desta lei.
A lavagem de alma das vereadoras
No sonho, o banho público não era apenas protesto — era convocação. As vereadoras de Natal, de todos os partidos, assistiam àquele ato de coragem e dignidade. Algo se movia dentro delas. Uma consciência, talvez adormecida pela rotina legislativa, despertava.
E então, ainda no sonho, elas se reuniram. Sem distinção partidária, sem jogos políticos, elaboraram conjuntamente um projeto de lei municipal robusto de combate à violência contra a mulher. Um projeto que previa punições mais severas aos agressores, ampliação da rede de proteção, criação de delegacias especializadas vinculadas à Guarda Municipal, investimento em educação para a igualdade de gênero nas escolas municipais, e campanhas permanentes de conscientização.
O projeto tramitou nas comissões e chegou ao plenário. Foi aprovado por ampla maioria. Apenas alguns vereadores votaram contra — aqueles mesmos que sempre se posicionam contra os direitos das mulheres, ligados à extrema direita, resistentes a qualquer mudança que ameace o patriarcado. Mas eram minoria. A maioria escolheu o lado certo da história.
Esta foi a “lavagem de alma das vereadoras”: o momento em que elas decidiram ser mais que legisladoras, mas defensoras ativas da vida e da dignidade das mulheres.
A nova era para as mulheres natalenses
Imagino, no prolongamento deste sonho, como seria Natal sob a vigência de uma lei municipal verdadeiramente transformadora.
As ruas da cidade se tornariam mais seguras. Mulheres poderiam caminhar sem medo pela Ribeira, por Ponta Negra, pelo Alecrim. As delegacias especializadas existiriam em cada zona da cidade, funcionando 24 horas, com equipes treinadas em atendimento humanizado. As escolas municipais incluiriam, desde a educação infantil, programas de educação para o respeito, a igualdade e o consentimento.
Haveria casas de acolhimento em número suficiente para receber todas as mulheres que precisassem sair de situações de violência, com apoio psicológico, jurídico e profissional para reconstruir suas vidas. Campanhas permanentes ocupariam outdoors, redes sociais e programas de rádio, desconstruindo o machismo desde a raiz. Porém, toda essa era de melhoria da condição de vida das mulheres, por conseguinte também da sociedade natalense, dependeria da sanção do prefeito ao projeto das vereadoras. Dado o histórico de vetos a projetos de de acolhimento das mulheres e enfrentamento da violência de gênero contra elas, será preciso uma mobilização prévia à ação do prefeito para pressioná-lo à sanção integral do projeto.
E o mais importante: a sociedade natalense se envolveria. Vizinhos não fechariam mais os olhos para gritos vindos da casa ao lado. Familiares não tolerariam mais “brincadeiras” machistas. Homens educariam outros homens sobre respeito e limites. Como diz a ministra Cida Gonçalves, “precisamos de uma sociedade que não se cale, que não diga que isso é só responsabilidade do Estado”.
Nesta nova era, os índices de violência cairiam drasticamente. As tentativas de feminicídio não cresceriam 71% ao ano, mas diminuiriam progressivamente. As medidas protetivas seriam cumpridas, monitoradas e efetivas. E, o mais profundo: começaríamos a transformar a mentalidade que gera a violência, não apenas punindo o ato violento.
Acordei deste sonho com uma certeza: não podemos esperar que ele se torne realidade por si só. Os banhos públicos de resistência, a mobilização das vereadoras, a nova era para as mulheres de Natal — tudo isso depende de nós. A violência contra a mulher é assunto prioritário, merecedor da mais alta seriedade e deve ser tratado com rigor máximo.
Depende de cada mulher que decide denunciar, mesmo com medo. De cada homem que escolhe desconstruir sua própria masculinidade tóxica. De cada vereadora e vereador que prioriza a vida das mulheres em seus mandatos. De cada cidadã e cidadão que intervém quando presencia uma situação de violência.
A água que cai dos caminhões-pipa no meu sonho é símbolo de purificação, mas também de urgência — como as chuvas torrenciais que não podem mais ser adiadas. Pesquisadoras afirmam que precisamos de mudança cultural, pois punições mais severas sozinhas não reduzem a violência.
Basta de violência contra a mulher. Basta de números que parecem estatísticas, mas são vidas — nomes, rostos, sonhos interrompidos. Basta de naturalizar o inaceitável.
Mulheres, uni-vos na ação! Que o sonho se torne lei. E que a lei se torne vida.
“Viver é melhor que sonhar…” A humanidade só tem a ganhar vivendo sem violência de gênero.
Canais de denúncia contra Violência de Gênero
Ligue 180: Central de Atendimento à Mulher (gratuito, 24 horas/dia, 7 dias/semana), acessível em todo o país.
Central de Atendimento à Mulher – chat no Whatsapp: (61) 9610-0180
190: Polícia Militar (Em casos de emergência, a orientação é acionar imediatamente a Polícia Militar pelo número 190, em todo o Brasil).
197: Polícia Civil – Denúncia Anônima, disponível em alguns estados.
Natal, dezembro de 2025
Informação relacionada recente:
Nos estertores do encerramento deste artigo, tomei conhecimento do fato descrito nesta notícia: “Lei que pune feminicídio com prisão perpétua entra em vigor na Itália” … – Disponível em femicidioitalia Acesso em 17/12/2025, 12:00 h.
Referências
ebc1: Agência Brasil: Direitos Humanos: Mulheres vão às ruas em todo país para protestar contra o feminicídio (Mobilização nacional foi convocada após crimes recentes). Publicado em Brasília, 07/12/2025 às 07:30 h. Acesso: 12/12/2025.
DUDH: Declaração Universal dos Direitos Humanos. (Adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro de 1948). Acesso em 10/12/2025.
LMP: Lei Maria da Penha – Lei Federal no Brasil (Lei nº 11.340/2006). Acesso em 10/12/2025.
ebc2: Agência Brasil: Direitos Humanos: 61 socos: caso no RN retrata escalada da violência contra mulheres. (Câmeras de elevador flagraram agressão a Juliana Garcia em Natal). Brasília: 02/08/2025. ; Acesso 10/12/2025.
cnj: Agência CNJ de Notícias: Novo painel da violência contra a mulher é lançado durante sessão ordinária do CNJ. Brasília: 11/03/2025. Acesso em 10/12/2025.
ebc3: Agência Brasil: Direitos Humanos: Brasil registra 1.450 feminicídios em 2024, 12 a mais que ano anterior. (Somados a outros tipos de morte feminina, o número caiu). Brasília, 25/03/2025. Acesso em 10/12/2025.
mprs: Feminicídios e violência sexual batem recorde no Brasil em 2024, aponta 19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Porto Alegre, 29/07/2025. Acesso em 10/12/2025.
natalemfoco: Feminicídios de mulheres no Rio Grande do Norte mais que dobrou nos últimos 4 anos Natal, 31/07/2025. Acesso: 10/12/2025.
pontanegranews: Violência contra a mulher aumenta 12,7% no Rio Grande do Norte. Natal, 29/07/2025. Acesso: 10/12/2025.
gazetadigital: Agressão no Rio Grande do Norte retrata escalada da violência contra mulheres. Cuiabá, 02/08/2025. Acesso em 10/12/2025.
acordacidade: 61 socos: caso no Rio Grande do Norte retrata escalada da violência contra mulheres. Feira de Santana, 02/08/2025. Acesso em 10/12/2025.
senado: Comparativo Nacional de Violência Contra a Mulher. Institucional: DataSenado 2025. Brasília, 27/11/2025. Acesso em 10/12/2025.
saibamais Câmara mantém vetos a leis de proteção às mulheres em Natal. Publicado em Natal, RN, 12/12/2025. Acesso em 12/12/2025.
saibamais Lei Juliana Soares é aprovada na Câmara de Natal Publicado em Natal, RN, em 27 de agosto de 2025.
imp A Lei Maria da Penha: Tipos de Violência; A Lei na Íntegra e Comentada; e Resumo da Lei – Lei n. 11.340/2006 – sancionada em 7 de agosto de 2006 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Acesso em 10/12/2025.
projuris 17 anos da Lei Maria da Penha: o que é a Lei e quais as mudanças mais recentes? São Paulo, 07/08/2023. Acesso em 10/12/2025.
Nota do autor: Este artigo foi inspirado em um sonho real sobre resistência feminina na cidade de Natal. Todos os dados estatísticos citados são reais e foram extraídos de fontes oficiais, conforme consta nas Referências.
*Ciclamio Leite Barreto é professor titular aposentado do Depto de Física da UFRN desde 9 de junho de 2025
Fonte: saibamais.jor.br




