Por Elizabeth Olegario, escritora e investigadora do CHAM (FCSH-NOVA)
Ao completar 90 anos, a Insurreição Comunista de 1935 continua sendo um dos episódios mais emblemáticos da história política de Natal, Capital do Rio Grande do Norte. Em uma cidade marcada pela longa permanência de estruturas oligárquicas e por uma cultura política fundada no compadrio, ocorreu, entre 23 e 27 de novembro, a única experiência de governo de orientação comunista da história brasileira e o primeiro da América Latina. Trata-se de um evento que não pode ser compreendido isoladamente, mas inserido nas tensões que atravessavam, e ainda atravessam, a capital potiguar.
IMPRENSA, POBREZA E PODER: O PAPEL DOS JORNAIS NA MANUTENÇÃO DAS ELITES
Nas primeiras décadas do século XX, a imprensa em cidades pobres do Nordeste desempenhou função decisiva na reprodução das elites políticas. A baixa escolarização, a concentração dos meios de impressão e a fragilidade do espaço público tornavam os jornais instrumentos centrais de legitimação dos grupos dominantes. Em Natal, esse fenômeno era particularmente evidente: periódicos eram frequentemente financiados, controlados ou influenciados por famílias tradicionais que, por meio deles, consolidavam discursos, atacavam adversários e delimitavam quem podia ou não falar no espaço público.
Nessas condições, a imprensa funcionava como extensão simbólica das oligarquias. Mais que noticiar fatos, ela moldava percepções, determinava hierarquias de relevância e operava como mecanismo de exclusão política. A circulação restrita, o alto custo de produção e a fragilidade das experiências independentes reforçavam a hegemonia das elites sobre o debate público.
O SURGIMENTO DE A LIBERDADE
É nesse contexto que se torna ainda mais significativa a criação do jornal A Liberdade, durante os quatro dias do governo revolucionário. A instalação de uma nova imprensa, mesmo improvisada, representou não apenas necessidade organizacional, mas ato deliberado de contestação ao monopólio comunicacional oligárquico. A Liberdade rompeu, ainda que brevemente, a relação histórica entre jornalismo e poder patrimonialista na cidade. Tratava-se de uma tentativa de disputar a narrativa pública, introduzir novos vocabulários políticos e ampliar o acesso à informação em uma sociedade onde a palavra impressa era instrumento de controle social.
MOBILIDADE, ECONOMIA E POLÍTICAS POPULARES
Outras medidas do Comitê Popular Revolucionário reforçaram a ruptura com lógicas tradicionais de gestão pública. O transporte gratuito nos bondes, altamente simbólico, permitiu que a população experimentasse, ainda que momentaneamente, formas mais igualitárias de circulação urbana. A gratuidade foi registrada como um momento de festa popular e tornou-se um dos elementos mais persistentes da memória coletiva sobre a Intentona.
Do mesmo modo, o confisco de fundos do Banco do Brasil para distribuição popular e a imposição de redução de preços ao comércio local expressaram tentativas de reorganização econômica segundo princípios redistributivos,. embora também tenham provocado efeitos descontrolados, como fechamento de lojas e episódios de saque. Em 27 de novembro, com a chegada das tropas federais, a experiência foi encerrada e o poder oligárquico restaurado.
NATAL E SUA POLÍTICA DE ABANDONO
A revisão desses eventos é particularmente relevante diante da persistência de padrões históricos de negligência pública na cidade. A morte de Romildo Soares, figura conhecida do universo cultural potiguar, no Centro de Natal, com um prato de cuscuz, tornou-se símbolo contemporâneo do abandono de artistas e trabalhadores da cultura. Sua morte ecoou a mesma lógica de invisibilização que atinge patrimônios, práticas e indivíduos cujas contribuições raramente são reconhecidas institucionalmente.
A Ribeira, outrora núcleo intelectual, boêmio e administrativo da cidade, exemplifica a continuidade dessa política de descaso. A deterioração de seu conjunto arquitetônico, a intermitência de projetos culturais e a ausência de investimentos consistentes evidenciam um processo crônico de desmantelamento de memória urbana.
Nesse panorama, a intervenção conhecida como “engorda de Ponta Negra”, que rapidamente demonstrou fragilidades estruturais ao ser parcialmente destruída pela ação da chuva constitui demonstração contemporânea da condução de políticas públicas sem planejamento de longo prazo. A intervenção apresentada como modernização tornou-se metáfora de políticas superficiais que ignoram fundamentos ambientais e territoriais.
A CIDADE QUE NÃO CONSAGRA
A célebre formulação de Câmara Cascudo:
“Natal não consagra nem desconsagra ninguém”.
torna-se, assim, diagnóstico histórico. Ela sintetiza a incapacidade da cidade de consolidar políticas duradouras de memória, reconhecimento e preservação. Tanto a Insurreição de 1935 quanto os episódios recentes mostram uma cidade que registra lampejos de transformação, mas cujo padrão dominante é o da descontinuidade.
INSURREIÇÃO E PERMANECIAS HISTÓRICAS
Revisitar a Insurreição Comunista nove décadas depois permite reconhecer que sua importância ultrapassa o campo dos estudos sobre movimentos revolucionários. Ela funciona como lente para compreender o próprio funcionamento social e político de Natal: uma cidade onde a imprensa sempre teve papel estrutural na manutenção do poder; onde experiências de participação popular foram rapidamente desarticuladas; onde cultura e patrimônio são sistematicamente negligenciados; e onde políticas urbanas recentes revelam fragilidades semelhantes às de cem anos atrás.
Refletir sobre 1935 é, portanto, refletir sobre os impasses persistentes de Natal: sua dificuldade de construir continuidade, de preservar sua memória e de reconhecer seus protagonistas. A Insurreição comunista permanece como marco porque ilumina não apenas o que poderia ter sido, mas sobretudo aquilo que continua sendo.
Fonte: saibamais.jor.br



