Num cenário de disputas por território entre facções em expansão, a ausência do Estado que se faz presente apenas em momentos de repressão revela a continuidade de uma política comprovadamente ineficaz. O problema não é novo, mas se repete Brasil afora. Em Mãe Luíza, bairro da Zona Leste de Natal, a preocupação tem se materializado com a frequência de tiroteios, chegando a quatro apenas no mês de novembro, que ainda nem acabou.
“Os tiroteios recentes em Mãe Luíza não são episódios isolados, mas resultado de um contexto que vem se agravando há anos. Hoje, o bairro vive sob a influência direta de uma facção criminosa que disputa a manutenção do controle territorial. Essa disputa não é apenas por poder abstrato, pois estamos falando de quem controla a circulação de pessoas, o comércio ilegal, a intimidação de moradores e, sobretudo, a relação com o Estado. É fundamental compreender que facções só se consolidam onde o Estado se faz ausente ou presente apenas de forma repressiva. Mãe Luíza é um território marcado por vulnerabilidades históricas que vão desde a falta de políticas públicas continuadas, urbanização precária (muitas ruas ainda de barro, sem iluminação, sem coleta de lixo), ausência de equipamentos sociais suficientes e poucas oportunidades para a juventude. Esse cenário abre espaço para que grupos criminosos se afirmem como autoridade de fato”, contextualiza Francisco Augusto Cruz, pesquisador da Segurança Pública e Sistema Prisional.
De acordo com a Polícia Militar, grupos criminosos têm tentado se instalar no bairro, dando início a uma disputa de facções.
“Do ponto de vista da segurança pública, essa é uma situação muito grave, porque a disputa entre facções ou a tentativa de uma delas de reafirmar seu domínio coloca a população em risco direto. Mas é igualmente importante dizer que não resolveremos isso apenas com aumento de policiamento. A repressão isolada não desmonta a lógica que sustenta o controle territorial. O que vemos hoje em Mãe Luíza é o resultado da combinação entre pobreza, abandono estatal e a expansão estratégica das facções que é uma tendência nacional. Se queremos interromper esse ciclo, precisamos de uma resposta que una segurança pública qualificada, inteligência policial e políticas sociais robustas. O Estado precisa estar presente não só com a força, mas com saúde, educação, cultura, esporte, oportunidades e garantia de direitos”, avalia Augusto Cruz.
Esta semana, dez conselheiros – de um total de 14 – que fazem parte do Concidade (Conselho da Cidade do Natal) se reuniram com a Prefeitura para definir um território que deverá receber políticas públicas integradas que sejam capazes de prevenir a violência.
“Geralmente, essa política é aplicada em territórios que já passaram por conflitos e que tiveram operações policiais de saturação. É o caso de Mãe Luíza, Felipe Camarão e territórios”, explica Jefferson Lúcio, Conselheiro Territorial do Concidade.
Na próxima segunda, 1º de dezembro, o grupo volta a se reunir para eleger o território que receberá apoio do município para implantação de um piloto de política pública de prevenção.
“A perspectiva é de integração da arte e cultura com a segurança pública, que no caso do município é a Guarda Municipal, mas numa abordagem cidadã”, acrescenta Jefferson.
A orientação de quem pesquisa o tema é, justamente, no sentido de reconhecer o problema com uma atuação com novas perspectivas.
“Os poderes públicos precisam lidar com o crime e o tráfico em comunidades como Mãe Luíza com uma combinação de firmeza e responsabilidade histórica. É preciso dizer com clareza: o Estado deve, sim, impor seu poder legítimo sobre qualquer território. Uma comunidade não pode ficar refém de grupos armados e cabe ao Estado garantir segurança, liberdade de circulação e proteção à vida. Mas, é igualmente importante reconhecer que chegamos a esse ponto porque o próprio Estado foi negligente durante décadas. Mãe Luíza, como tantas outras áreas periféricas de Natal, só conhece a presença estatal de duas formas: o mínimo indispensável para manter serviços funcionando, e a polícia quando há conflito direto com facções criminosas. Fora dos momentos de operações policiais como vive a população?”, questiona Augusto Cruz.
“Quando olhamos para alguns bairros de Natal, vemos investimentos em cultura, eventos, reformas de praças, novas escolas, iluminação moderna, equipamentos de esporte e lazer, pontos de ônibus revitalizados. Em Mãe Luíza, a notícia que circula é quase sempre de incursões policiais. Isso não é política pública, mas é um ciclo de abandono e repressão. Por isso, a resposta não pode ser apenas policial. A ação policial é necessária, claro, especialmente para desarticular grupos armados e garantir a ordem. Mas se o Estado continuar aparecendo apenas quando há tiroteio, vai continuar ‘enxugando gelo’. O enfrentamento ao tráfico precisa vir junto de políticas sociais consistentes, presença cotidiana de serviços, programas para a juventude, oportunidades de trabalho e renda, apoio às famílias e investimentos permanentes em infraestrutura”, acrescenta.
Em decorrência dos últimos tiroteios em Mãe Luíza, 12 pessoas foram presas pela Polícia Militar. Há registro de ocorrências no dia 5 de novembro, 13, 16 e no último final de semana. Desde o dia 7 de novembro, a PM tem realizado a Operação “Mãe Luíza Segura”, o que resultou na prisão das 12 pessoas citadas anteriormente, além da apreensão de armas, um veículo clonado, celulares e material para o tráfico de drogas.
“A luta pelo território é a marca das facções criminosas no Brasil e que não é diferente aqui no Rio Grande do Norte. O Estado precisa manter-se sempre atento e se antecipar à expansão das organizações, mas precisa considerar não implementar uma política puramente combativa. As facções precisam ser desbaratadas desde suas fontes de financiamento, a cadeia produtiva de produção, transporte e venda de drogas, o controle de armas deve ser regulamentado e intensificado no país, a questão das fronteiras, etc. Não é possível encontrar soluções simples para problemas extremamente complexos. Mas é possível avançar e em médio prazo, promover uma mudança naquela comunidade e em tantas outras que são dominadas pelo crime”, sugere o pesquisador.
Fonte: saibamais.jor.br
