Sem qualquer aviso prévio ou notificação, Valdira Silva dos Santos, de 49 anos, perdeu armários, fogão, mesa, cama e outros objetos, quando o trator do tipo caçamba chegou para remover o que então era sua “casa”, um barraco armado junto com outras famílias em um terreno no bairro da Redinha, na Zona Norte de Natal.
“Não tinha onde morar, não posso trabalhar e recebo apenas o Bolsa Família. Sem condições de pagar aluguel, fui para a ocupação, fiz um 1º barraco, a Prefeitura derrubou. Fiz o 2º e derrubaram novamente. Perdi armário, mesa, cama, roupas, removeram o barraco com tudo dentro. Fui questionar para tirar as coisas de dentro, mas não deixaram. Foi uma remoção violenta, tinha Guarda Municipal, Polícia Militar. Me trataram mal, me gritaram, disseram que se eu falasse alguma coisa, poderia ser presa”, relembra Valdira.
O caso dela não é uma exceção. De acordo com o terceiro relatório produzido pela Rede Nordeste de Monitoramento e Incidência em Conflitos Fundiários Urbanos, iniciativa coordenada pelo Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU), sob os mais diferentes pretextos, remoções e despejos têm sido realizados expulsando famílias em situação de vulnerabilidade sem qualquer tipo de planejamento sobre o destino dessas pessoas.
Segundo o relatório, há uma banalização das remoções autoexecutadas, ou seja, aquelas que são executadas pelo próprio estado. Em Natal, por exemplo, os pesquisadores relataram que a Comunidade da Redinha – tradicional território de Pescadores – foi alvo de operações violentas em 2023, sob o pretexto da “proteção ambiental”, enquanto empreendimentos turísticos avançaram sobre a área.
Na avaliação dos pesquisadores, isso demonstra como os planos diretores são reformulados sem garantir transparência, consulta adequada às comunidades afetadas ou respeito à função social da propriedade. Em vários casos, até os dispositivos de zoneamento que garantem proteção às comunidades são ignorados, revogados ou reconfigurados de maneira a facilitar a remoção de famílias em benefício de interesses privados.
O estudo, que traz dados detalhados da situação regional, será debatido durante a audiência pública que será realizada nesta sexta (28), a partir das 9h, na Câmara Municipal de Natal. Além de apresentar a gravidade da situação, o relatório também aponta caminhos para possíveis políticas públicas.
A Redinha
Permissionários e donos de restaurantes no antigo Mercado da Redinha foram despejados e estão impedidos de atuar no local desde abril de 2022, quando o espaço foi fechado para a construção do Complexo Turístico da Redinha.
A obra já foi concluída e houve até inauguração com o 1º Festival Gastronômico “Boteco de Natal”, realizado entre 26 de dezembro de 2024 e 26 de janeiro de 2025, mas o espaço voltou a ser fechado após o evento, sendo reaberto temporariamente entre 7 de fevereiro e 9 de março, para que os trabalhadores pudessem aproveitar o período de alta estação.

O Ministério Público Federal (MPF) entrou com um pedido de suspensão dos efeitos da lei municipal nº 7.741/24, que regulamenta a concessão do Complexo Turístico da Redinha. Mas, a solicitação foi negada pelo juiz federal Janilson Bezerra de Siqueira, titular da 4ª Vara Federal do Rio Grande do Norte.
O MPF recorreu ao Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) para garantir o direito de consulta prévia e participação da comunidade costeira tradicional nas medidas municipais relacionadas às obras e à gestão do Complexo Turístico da Redinha, onde fica o Mercado. O caso segue em análise.
Mudanças em leis que beneficiam setor privado
Segundo os pesquisadores, o relatório ainda mostra que os conflitos não persistem porque faltam instrumentos de controle, mas porque os existentes têm sido capturados, esvaziados ou ignorados.
Outro exemplo da utilização da força coercitiva conferida ao poder público para a execução de remoções forçadas foi observado pela Rede Nordeste no caso da ocupação do Viaduto do Baldo.
A área, que era ocupada pela população em situação de rua há mais de 20 anos, sofreu uma ameaça de remoção administrativa em 2020, com comunicado da Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (Semsur), o que gerou mobilização por parte do Movimento Nacional da População em Situação de Rua e da campanha Despejo Zero. Porém, em fevereiro de 2021 foi realizado o primeiro despejo autoexecutado de um total de sete registrados no local naquele ano.
Além da destruição dos barracos, a população que ocupava o local sofreu com forte criminalização por parte dos agentes públicos, apesar do ministro Alexandre de Morais (STF) ter proferido, em julho de 2023, decisão cautelar nos autos da ADPF 976/DF determinando a elaboração de plano de ação e monitoramento da implementação da política nacional para a população em situação de rua pelo poder executivo federal, no prazo de 120 dias. Moraes também determinou aos poderes executivos distrital, estaduais e municipais que proibissem o recolhimento forçado de bens e pertences, assim como a remoção e o transporte compulsório de pessoas em situação de rua; além do emprego de técnicas de arquitetura hostil contra as populações em situação de rua.
Um dos discursos utilizados para legitimar a ação estatal nesse tipo de despejo forçado é a defesa da “segurança pública”, com a criminalização da população vulnerável que é removida. Áreas como Brasília Teimosa e Jacó – Rua do Motor são reconhecidas como AEIS (Áreas Especiais de Interesse Social), também enfrentam reiteradas tentativas de remoção.
Valdira Silva, que a gente conheceu no início desta matéria, até hoje tenta recebe algum outro auxílio que ajude nas despesas da casa. Atualmente ela paga aluguel, mas não descarta a possibilidade de voltar a participar de uma ocupação.
“Faço tratamento psiquiátrico e cuido de um neto autista, não tenho condições de trabalhar. Somos só eu, ele e uma filha na casa. Vivo com um Bolsa Família e com a ajuda do meu pai, que me dá R$ 150 por mês para ajudar a comprar as coisas para casa, e da assistente social do CRAS [Centro de Referência de Assistência Social], que todo mês me dá uma cesta básica. Boa parte do Bolsa Família vai para o aluguel, a assistente até tentou me colocar no aluguel social, mas até hoje estou esperando”, reclama.
Saiba Mais
Serviço
O que: Audiência Pública para discutir as remoções forçadas e despejos urbanos em Natal
Quando: sexta (28)
Hora: 9h
Local: Câmara Municipal de Natal
Fonte: saibamais.jor.br