Flordelis e Negão, os dois vira-latas criados pelo vigia Israel Martins, olham desconfiados para os desconhecidos que chegam sem avisar, mas assim que os centenários portões de ferro macico se abrem, a desconfiança dá lugar a olhares melosos que quase suplicam por uma migalha de atenção, aproximam-se esperando receber um afago na cabeça e rapidamente estabelecem uma intimidade quase familiar. É que visitas são cada vez mais raras ao velho palacete localizado na Rua Coronel Lins Caldas, no bairro de Cidade Alta, onde um dia funcionou a Casa do Estudante do Rio Grande do Norte (Cern), que teve sua primeira sede fundada em 1946, mas foi transferida dez anos depois para o prédio atualmente abandonado – originalmente construído para abrigar o “Hospital da Caridade” em 1856.
“É estranho ver o prédio assim”, desabafa, em um tom que mistura desalento, nostalgia e tristeza, o mestre, doutor e pós-doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), João Maurício Gomes Neto, que morou na Casa do Estudante de 1999 a 2002.
O cenário que se vê além da fachada do velho casarão neoclássico remete ao de filmes pós-apocalípticos em que a civilização é destruída por um evento catastrófico, como uma guerra, uma pandemia ou o desastre natural, restando apenas um pequeno número de sobreviventes.
Não seria exagero dizer que Israel, Flordelis e Negão, em certa medida, são os sobreviventes que cuidam do que restou da Casa do Estudante, que fechou as portas em 2020, em meio à pandemia da Covid-19 – o que, para muita gente, parecia ser o início do “fim do mundo”.

Os livros amontoados em um recanto na entrada do prédio, entre escombros, entulhos e destroços, são os últimos vestígios do que já foi o lugar que abrigou milhares de jovens pobres vindos do interior potiguar à procura da oportunidade de mudar de vida através de uma educação de melhor qualidade em Natal.
Natural de Touros, João Maurício foi um desses jovens que, parafraseando Belchior em “Fotografia 3×4”, “desceu do interior pra cidade grande” para estudar, entrar na universidade e conquistar um diploma que lhe assegurasse não só sua autonomia financeira, mas também lhe possibilitasse ajudar a melhorar as condições de vida do pai e da mãe agricultores, que haviam ficado lá no seu torrão natal.
Essa, quase sempre, é a missão dos filhos da classe trabalhadora: desafiar a escrita do destino, vencer na vida e reescrever a história das gerações que os antecederam – que, invariavelmente, é construída à base de muitas dificuldades, sacrifícios e privações.
Para citar novamente Belchior, que na mesma canção fala sobre “os pés cansados e feridos de andar légua tirana”, a caminhada para que vem desse lugar de não privilégio é sempre mais longa, desafiadora e cheia de obstáculos.
Para Maurício, essa jornada não foi diferente, mas, apesar dos martírios do percurso, ele perseguiu seus objetivos. Em 2003, ainda através do antigo sistema de vestibular, conseguiu entrar na UFRN para cursar História.
Fez mestrado de 2008 a 2010, depois foi professor substituto na UERN em Mossoró de 2011 a 2013 e passou no concurso pára professor efetivo da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) em 2013.
Ele foi mais longe ainda. De 2015 a 2019, cursou doutorado na Universidade Estadual Paulista (Unesp), na cidade de Franca (SP). Há um ano, retornou a Natal para fazer o pós-doutorado na UFRN.
Nada disso, provavelmente, não teria sido possível ou seria mais difícil ainda se, lá atrás, quando ele saiu de Touros com destino a Natal, não houvesse a Casa do Estudante.
“Então, sem a Casa do Estudante, por exemplo, eu possivelmente não teria feito o ensino médio em Natal. Ela me possibilitou um lugar para estar, um lugar para viver, um lugar para morar e significou, inclusive, a abertura em termos de dignidade e de reconhecimento da minha cidadania”, reconhece.
Ele afirma não “romantizar” as dificuldades que viveu, mas admite que aprendeu muito com a experiência de morar na Casa do Estudante.
“Teve duas coisas que me ensinaram muito naquele período. Uma delas foi a dimensão da socialização, porque, como faltava comida, a gente construía uma rede de apoio para conseguir sobreviver nos momentos mais difíceis, indo num quarto, indo no outro. Um fazia isso, outro fazia aquilo, juntava o cuscuz com arroz e a gente sobrevivia”, narra.
O outro aprendizado, segundo ele, veio com a primeira experiência real com a fome: “Eu vim de uma família pobre, do interior potiguar, mas lá em casa eu nunca tinha passado fome. A gente tinha o básico, muitas vezes não tinha a mistura, mas fome mesmo nunca tinha passado. A primeira vez foi na Casa do Estudante”.
“Doeu no momento em que eu senti isso”, confessa, lembrando que essa experiência o fez entender o esforço que seu pai e sua mãe, falecidos em 2011 e 2017, respectivamente, faziam para trazer comida da roça e colocar na mesa de casa.
“Quando eu cheguei à Casa do Estudante, às vezes nos domingos olhava o Rio Potengi e depois dormia o dia inteiro para enganar a fome. Então, eu lembrava que, em casa, jamais passaria por aquilo. Foi outro aprendizado do encontro com o mundo de uma forma muito dura”, diz, acrescentando que, apesar das recordações difíceis, só tem a agradecer à antiga instituição.
Os vários usos do velho casarão que abrigou a Casa do Estudante
Ao relembrar a própria passagem pela Casa do Estudante, Maurício fala sobre a importância dela para as diversas gerações de jovens que, graças ao acolhimento que a instituição proporcionou, conseguiram mudar o curso das suas vidas.
“Esse prédio foi a primeira sede do que hoje é o IFRN. Depois, ele passou a sediar a Casa do Estudante. Naquela época, o que a gente conhece atualmente como ensino médio não era tão acessível, fazendo com que jovens se deslocassem do interior para conseguir estudar em Natal. Essa foi uma realidade que eu vivi. Isso evidencia a dimensão da educação como um lugar de inclusão”, relembra.
De fato, após abrigar o “Hospital da Caridade”, construído para receber indigentes, doentes pobres e apenados do sistema prisional durante uma epidemia de cólera que acometeu a cidade em meados do século XIX, o prédio sediou a Escola de Aprendizes Artífices, fundada em 1909, embrião do futuro Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN).
Em 1914, com a transferência da Escola de Aprendizes Artífices para a nova sede na Avenida Rio Branco, onde funciona atualmente o Campus Natal-Cidade Alta do IFRN, o prédio passou a ser ocupado pelo 21º Batalhão Policial Militar.
Foi lá, inclusive, onde se deu a histórica disputa entre praças e revolucionários durante a Insurreição Comunista do Rio Grande do Norte, que durou de 23 a 27 de novembro de 1935.
O levante que instaurou o “Governo Popular Revolucionário” em Natal foi liderado, entre outros nomes, pelo sapateiro José Praxedes (1900-1984), que nasceu em uma comunidade pobre às margens do Rio Potengi, foi preso duas vezes pelo governo de Getúlio Vargas e, após o insucesso do movimento, viveu 49 anos na clandestinidade, adotando o nome de Eduardo Pereira da Silva.
A única resistência ao movimento aconteceu justamente no 21º BPM. Foram 19 horas seguidas de enfrentamento a bala, que deixaram as paredes do velho palacete completamente esburacadas. O portão de ferro da entrada do prédio, que nunca foi trocado, ainda conserva as marcas dessa intensa troca de tiros.
Depois do confronto, o quartel permaneceu em atividade até 1953, quando a Polícia Militar foi transferida para sua nova sede na Avenida Rodrigues Alves. O prédio ficou desocupado durante três anos, até que em 1956, graças a uma determinação do então governador Sylvio Pedroza (1918-1998), passou a abrigar a Casa do Estudante, que mais tarde seria base de resistência contra a ditadura militar instaurada no país após o golpe de 1964.
A promessa de transformar a Casa do Estudante em um “Memorial da Juventude”
Em 31 de março de 2019, no aniversário de 55 anos do golpe militar de 1964, a governadora Fátima Bezerra (PT) anunciou que o prédio seria reformado para, além de manter o caráter de residência estudantil, abrigar também a Secretaria Estadual de Mulheres, Juventude, Igualdade Racial e Direitos Humanos (Semjidh).
Na mesma ocasião, o prédio foi rebatizado como Casa do Estudante Emanuel Bezerra dos Santos, em homenagem ao jovem que presidiu a instituição antes de ser assassinado pelos militares em 1973.
O Governo do Estado também anunciou, à época, a construção de um memorial da juventude para homenagear a memória das vítimas do regime de exceção no RN. O projeto, no entanto, nunca foi concretizado, relegando o prédio à situação atual de abandono, apesar da sua importância arquitetônica, histórica e política.
A Semjidh informou que o prédio está em “processo de devolução” à Secretaria Estadual de Administração. A pasta explicou que a decisão se deveu ao “lapso temporal decorrido desde a concepção do projeto de reforma e o alto custo estimado para execução das obras”, que seria de mais de R$ 6,8 milhões.
As obras, prossegue a pasta, seriam custeadas em parte pela própria Semjidh, com recursos do Fundo Estadual de Defesa do Consumidor, em parceria com a Secretaria Estadual de Educação, Cultura, do Esporte e Lazer (Seec-RN).
De acordo, ainda, com a Semjidh, esse fundo “não dispõe dos mesmos recursos expressivos que possuía à época da aprovação do projeto pelo Conselho Estadual de Defesa do Consumidor (CEDC), o que inviabiliza a continuidade do planejamento inicial”.
“O processo encontra-se sob análise e acompanhamento do Grupo de Trabalho para Recuperação da Casa do Estudante do Rio Grande do Norte (GT-CERN), responsável por definir a melhor destinação do imóvel e estabelecer as responsabilidades quanto ao custeio das intervenções necessárias”, informou, em nota, a pasta.
Os integrantes do referido grupo de trabalho, segundo a assessoria de imprensa da Semjidh, ‘no momento não estão autorizados a falar” sobre a situação do projeto de recuperação da antiga Casa do Estudante.
Israel Martins, o vigia que toma conta do prédio, contou que o lugar viraria uma escolinha de formação do Corpo de Bombeiros do RN. A Sead confirmou que “há um dialogo para a afetação do imóvel para uso do Corpo de Bombeiros”, mas não informou em que estágio está o processo.
Quando visitamos o prédio com João Maurício, na primeira semana de novembro, Israel disse que, no dia anterior, os bombeiros estivaram lá para fazer cortar a árvore que, antes erguia-se majestosa no meio do pátio central onde atualmente só há mato, lixo e umas teimosas bananeiras e palmeiras que, para recorrer novamente à analogia com a ficção, destoam da paisagem de “fim do mundo” dos filmes pós-apocalíticos.
Abandono do prédio evidencia nossa “relação com a memória”, diz historiador
Para João Maurício, a situação do prédio “evidencia a nossa relação com a memória”. Ele defende que a recuperação daquele patrimônio arquitetônico seria importante não apenas pela sua dimensão histórica, mas também para “apontar para o futuro”.
“O prédio tem uma dimensão histórica, com as várias utilizações que foram feitas dele ao longo do tempo, mas tem outra dimensão que dialoga muito com a importância que esse patrimônio arquitetônico deveria ter no presente, que é como ele aponta e, ao mesmo tempo, como ele é uma testemunha que evidencia a nossa relação com a memória”, reflete.
O ex-morador da Casa do Estudante sugere que o prédio poder ser “um espaço de memória”, onde, além de resgatar a história da sua fundação, os seus usos diversos e os personagens que passaram por lá, também possibilitasse compreender “a atuação do movimento estudantil e dos movimentos sociais populares, a luta da educação popular no estado e o debate sobre direitos humanos, como isso se relaciona com a própria formação do Rio Grande do Norte”.
“Poderia poder ser um espaço de memória, onde as pessoas tivessem acesso à compreensão da dimensão histórica do que isso significa, mas, ao mesmo tempo, um compromisso do poder público de preservar essa história e apontar para que lugar a gente vai no futuro”, diz.
Maurício comenta que há, ainda, outra dimensão envolvida que é pouco lembrada, que é a “das memórias dos vários sujeitos que passaram pela Casa do Estudante”.
“Tem um patrimônio arquivístico que eu não sei, por exemplo, onde está atualmente. A gente tinha as fichas de todo mundo que passou pela instituição, com a origem de cada um, as informações básicas, o que também seria um elemento para pensar uma história social muito interessante. Então, tem uma dimensão que é de ordem simbólica mesmo, dessa relação sobre como a gente lida com a memória e com a nossa formação histórica”, avalia.
Para o historiador, o estado de abandono do prédio, além de demonstrar o desprezo com um patrimônio arquitetônico importante da cidade, evidencia o que ele chama de “cultura do apagamento da memória coletiva”.
“Isso é um traço da nossa cultura, da nossa relação com os lugares de memória, que evidencia muito uma espécie de apagamento mesmo, de não nos reconhecermos e não nos preocuparmos em entender o que aquilo significa enquanto testemunha material das nossas experiências. Esse processo não é natural, ele faz parte de um movimento político de negação da cultura, da história e da nossa relação com os bens simbólicos, que são colocados sempre como algo menor. È como se pensar nessa dimensão mais metafísica mesmo não tivesse uma importância central para a gente se entender enquanto cidadão, se relacionar com o lugar, pensar o que significa o cuidado, compreender a relação com a memória e valorizar a referência das pessoas que vieram antes, as lutas que vieram antes e aquelas que poderão ser travadas depois, exatamente porque a gente tem consciência delas”, elabora.
Maurício insiste que o apagamento histórico não é aleatório, tampouco causal, mas sim um projeto intencional pensado para “colocar em destaque experiências diferentes daquelas que poderiam levar à compreensão de uma cidadania mais participativa efetivamente”.
“Quando você apaga essa memória, você apaga também os sujeitos que construíram coletivamente essa memória. Você tem, por exemplo, Emanuel Bezerra dos Santos, um personagem importante na luta contra a ditadura militar, que foi assassinado em 1973. Então, quando você apaga a memória desse espaço, você de certa forma também apaga simbolicamente a memória dessas pessoas e a possibilidade de construir referências que sirvam de identificação para lutas futuras, porque nunca é o passado pelo passado. Tem a ver com o apagamento do passado, mas também com uma espécie de cerceamento de outro modelo de sociedade que a gente pode se espelhar a partir dessas experiências”, opina.
Fonte: saibamais.jor.br