Quando Jota Mombaça atravessou novamente sua chegada a Natal, após quase uma década afastada das atividades públicas, a experiência se apresentou menos como um retorno e mais como um reconhecimento, um reencontro no território que a formou. Graduada pela UFRN e nascida no bairro do Alecrim, Jota Mombaça é uma artista multidisciplinar, escritora e pesquisadora brasileira, reconhecida internacionalmente por trabalhos que atravessam raça, gênero, violência colonial, performance e teoria crítica. Agora, pela primeira vez desde que saiu da cidade, ela retornava para conduzir uma oficina de dois dias e uma fala pública no CCHLA/UFRN, espaço cultural que, antes de sua partida, já havia atravessado sua formação afetiva, política e artística.
2012 e a primeira fronteira
O primeiro movimento de ruptura aconteceu em 2012, quando Jota se inscreveu em um festival de arte pública no Rio Grande do Sul. Passou, embarcou, atravessou a linha imaginária que separa o Nordeste do restante do Brasil, uma fronteira que, para ela, sempre carregou camadas de geografia simbólica, desigualdade e deslocamento.
“Foi a primeira vez que eu cruzava essa fronteira. Aqui eu já existia de um jeito meio tenso. Quando viajei, percebi que eu podia existir de outro modo”, lembra em entrevista à Agência Saiba Mais.
Embora essa viagem tenha sido curta, ela abriu fissuras que logo se tornaram caminhos. E esses caminhos, por sua vez, revelaram que ficar em Natal talvez fosse insustentável.
Na época, Mombaça circulava pela cena artística local, mas sempre a partir de posições que causavam desconforto. Havia feito o Auto de Natal: “uma das poucas oportunidades de trabalho artístico que pagavam algum dinheiro”, ela lembra, mas as apresentações daquele ano foram atravessadas por protestos contra a então prefeita Micarla de Sousa. O clima político somava-se às tensões internas da cena cultural, onde Jota não se sentia muito bem recebida.
Provocadora, crítica, incisiva. A artista transitava entre o teatro, a dança, os coletivos culturais e os espaços políticos anarquistas, sempre tensionando hierarquias, acessos, privilégios, panelas.
“Eu virei uma gata problemática. A gata que não ia contribuir com nada. E, ao mesmo tempo, eu era muito nova”, recorda.
Da escrita que incomodava à performance que desafinava as expectativas normativas, Jota começou a perceber que sua poética não encontraria respiro ali.
“Eu falava sozinha. Eu tinha amigas, rolês, tudo. Mas a coisa que eu queria fazer não tinha espaço para existir.”
A partir de 2012, Mombaça se espalha pelo Nordeste dando cursos independentes, debates, rodas de conversa sobre crítica, gênero, raça e dissidência. O queer, então emergente fora da academia, começava a circular entre as bixas, travestis e corpos dissidentes. Suas falas chamavam atenção e a levaram a Recife, João Pessoa, Salvador. Construía comunidade a cada cidade que tocava disposta a ouvir suas ideias.
Em 2016, muda-se para São Paulo. Em 2017, parte para uma residência artística em Atenas, e não volta mais. A saída do Brasil é definitiva, mas a ruptura com Natal já estava consumada um ano antes.
“Eu fui muito marcada pela sensação de que eu não podia voltar. Que eu não ia conseguir existir aqui.”
A ausência de raízes, diz ela, moldou boa parte da errância que estruturou sua obra até a pandemia, quando precisou criar uma noção de casa, de lar.
O que mudou quando ela voltou?
Quando Mombaça retorna agora, encontra outra paisagem. Não só urbana ou institucional, mas subjetiva.
Ao entrar na sala da oficina, no CCHLA, ela vê o que descreve como “uma outra configuração”: corpos não-binários, travestis, homens trans, presenças dissidentes plurais, corpos que antes eram raros, inomináveis ou isolados na cidade.
“No meu tempo, era só Leilane Assunção. Ela era única na universidade, única na cena alternativa. A gente crescia sem raiz”, diz.
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Hoje, ela reconhece uma mudança decisiva: o surgimento de um corpo coletivo, uma ecologia de pertencimento que faz com que identidades dissidentes já não precisem se explicar nem caminhar sozinhas. É nesse contexto que Jota, enquanto travesti, reflete:
“Ser a única é uma imagem de escassez. Agora, o ar parece mais abundante.”
Há, segundo ela, uma base construída, ainda complexa, ainda tensa, mas presente, que permite que jovens artistas e pesquisadoras da cidade cresçam amparadas por algo que simplesmente não existia antes.
A cidade que a formou pelo atrito
Apesar de ser estudada em grupos de pesquisa da UFRN, ter sua poética citada em artigos acadêmicos e ser referência nacional e internacional, Mombaça nunca havia sido convidada a produzir algo presencialmente em Natal desde que saiu. Nem uma oficina. Nem uma fala pública.
“É impressionante. Tem grupos que estudam meu trabalho, mas eu nunca tinha vindo aqui fazer nada com o meu rostão”, ela fala de maneira descontraída.
Por isso, esta volta não é só geográfica, é simbólica. Contraria a sensação de impossibilidade que marcou sua relação com a cidade.
Ao propor a oficina e a aula pública, Jota sabia que estava, pela primeira vez, elaborando algo para Natal, e não apesar de Natal. A oficina, intensa, confessional, política, mobilizou participantes de diversas gerações da cena artística local, provocando reflexões sobre pertencimento, colonialidade, crítica e criação coletiva durante os dias 6, 7 e 8 de novembro na programação do evento Abandonar o Mapa Colonial.
O que significa retornar?
A volta de Jota Mombaça não é triunfalista, ela não retorna para ocupar um lugar que um dia lhe negaram. Ela retorna para observar, pensar, dialogar, tensionar e, sobretudo, testemunhar o que cresceu enquanto ela esteve fora.
Ao longo dos últimos anos, Jota Mombaça conta manteve retornos esporádicos a Natal, visitas que funcionaram como exercícios de reinscrição no território de onde partiu, confessa que quando vem não costuma sair muito pela cidade. Quando questionada sobre planos e desejos para o futuro, ela conta sobre a vontade de montar uma escola de artes em Natal, concebida como um espaço de trocas, experimentações e encontros com novos artistas locais, fortalecendo o circuito cultural que atravessa sua própria trajetória:
“Eu tenho vontade de criar um espaço, uma escola mesmo. Não só no sentido de ensinar ou formar, porque “escola” também é como chamao coletivo de golfinhos, né? As golfinhas se juntam, formam o que é uma escola. E eu tenho um pouco essa ideia de criar um espaço de encontro, um espaço de nutrição coletiva mesmo. Acho que o meu projeto de vida agora está muito voltado para isso”, revela.
Retorna para pisar novamente em Natal com o olhar de quem já atravessou o mundo, mas ainda reconhece no território natalense seus primeiros cortes e caminhos. Volta com a sensação de que talvez não seja mais preciso fugir, e de que, desta vez, há pessoas dispostas para compreendê-la, acolhê-la e escutar o que tem a dizer.
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Fonte: saibamais.jor.br
