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o impacto do projeto “Escritores e Escritoras do Cárcere”

Por Fábio Ataíde, Guiomar Veras e Ana Paula Felizardo

A crise estrutural do sistema carcerário brasileiro, reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal como “estado de coisas inconstitucional” (ADPF nº 347), se faz em forma de exclusão social abrupta que afeta principalmente a juventude.

Segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública, o país registra 941.752 pessoas em cumprimento de pena, sendo 705.872 custodiadas em celas físicas e 235.880 em prisão domiciliar, com ou sem monitoramento eletrônico. A plataforma Geopresídios, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), confirma a gravidade do cenário: entre os 1.836 estabelecimentos inspecionados nos últimos três meses de 2025, a taxa média de ocupação é de 150,3%, o que significa 726.149 pessoas privadas de liberdade para apenas 483.258 vagas, um excedente de 242.891 indivíduos.

Grande parte dessa população aprisionada é formada por jovens que viveram em situação de privação social, antes de serem privados pela aplicação do direito penal.

Esses dados mostram que o encarceramento em massa da juventude é um dos maiores desafios contemporâneos do país. Trata-se de um fenômeno multidimensional que articula desigualdades, expectativas sociais de punição e insuficiências históricas das políticas públicas. Soluções simplistas revelam-se insuficientes diante da complexidade do fenômeno, que expõe a seletividade penal e seus efeitos sobre grupos vulnerabilizados.

Literatura como democratização e transformação

Criado em 2012 no Rio Grande do Norte, o Projeto Escritores e Escritoras do Cárcere se consolidou como uma ação social pioneira de humanização no sistema prisional brasileiro. A proposta inovadora transforma a leitura e a escrita em ferramentas de experiência social, oferecendo uma nova chance para pessoas privadas de liberdade.

A força do projeto vem da união de diferentes saberes e experiências. Sua fundação contou com a colaboração do juiz e professor Fábio Ataíde, da escritora e servidora pública Guiomar Veras, do egresso do sistema carcerário Newton Albuquerque, da pesquisadora Ana Paula Felizardo, do editor Aluísio Azevedo e da Pastoral Carcerária, entre outros apoiadores.

Mais do que uma atividade cultural, o projeto se tornou um canal para a reorganização pessoal e emocional dos participantes, abrindo portas para a remição de pena por meio da escrita, uma conquista regulamentada no Estado em 2017 pelo Provimento Nº162 da Corregedoria de Justiça do Rio Grande do Norte- CGJ/TJRN, posicionou a experiência potiguar em situação de vanguarda no cenário jurídico nacional. Posteriormente, em 2024, a prática foi institucionalizada em toda a região oeste do Estado pela Portaria Nº 12 da 3ª Vara Regional de Execução Penal.

O Projeto Escritores e Escritoras do Cárcere surgiu de uma rede colaborativa que reúne magistrados(as), escritores(as), pesquisadores(as), pessoas encarceradas e organizações da sociedade civil. Diferente de iniciativas centralizadas, o projeto foi construído a muitas mãos, integrando, reconhecendo e  valorizando  saberes do sistema de justiça, da literatura, da academia e da vivência do próprio cárcere.

Essa diversidade de vozes e experiências foi fundamental para criar um modelo inovador de remição da pena pela escrita. Juntos, esses agentes mobilizaram seus conhecimentos e espaços de atuação para desenvolver metodologias que promovem a responsabilização e a reconstrução de vidas no cárcere, priorizando a escrita e a cultura como caminhos de transformação social.

O Projeto Escritores e Escritoras do Cárcere tem sua origem na trajetória do escritor Newton Albuquerque. Natural de São Paulo, ele cumpriu pena por dez anos em diferentes presídios do Rio Grande do Norte, passando por unidades em Natal, Mossoró, Caicó e Nova Cruz, além de um período no sistema federal. Newton é sobrevivente do massacre de Alcaçuz, ocorrido em janeiro de 2017, fato que marcou profundamente a realidade prisional do Estado. Foi durante esse período de encarceramento, em meio a desafios extremos, que sua experiência com a leitura e a escrita se tornou a base do que mais tarde viria a ser o projeto.

Com a doação de um computador pela ONG Resposta – Responsabilidade Social Posta em Prática, foi possível digitar integralmente, sem acesso à internet, o livro do autor Carlos Romeu, obra poética que se tornou marco simbólico da potência transformadora da escrita no contexto do encarceramento.

O que era uma iniciativa local, ao longo dos anos, tornou-se uma referência para o sistema prisional no Estado no uso da literatura do testemunho. O método foi sendo aprimorado e hoje combina círculos restaurativos, que focam em responsabilização e diálogo, oficinas de escrita criativa e a “escrevivência”, um conceito que une a escrita à experiência de vida como forma de empoderamento.

O Projeto Escritores e Escritoras do Cárcere alcançou resultados expressivos, consolidando-se como um movimento literário dos mais relevantes desenvolvidos dentro do sistema prisional brasileiro, realizando uma historiografia prisional autêntica, contada pelos próprios apenados(as).

Ao longo de treze anos, foram produzidas dezenas de obras por pessoas privadas de liberdade, com nove livros já publicados, todos alinhados a parâmetros editoriais comprometidos com a cultura de paz e a justiça restaurativa. Além disso, o projeto registrou cerca de 80 histórias de vidas de contadores de histórias, pessoas que narraram suas vidas para que outros escritores fizessem o registro. Reunidas em quatro livros, dos quais um já se encontra publicado, essa documentação biográfica ofereceu assistência direta a mais de 100 pessoas em processos de narrativas de si.

Hoje, dezenas de escritores e contadores de histórias aguardam reconhecimento judicial para fins de remição da pena por meio da escrita, evidenciando o impacto humano, social e educativo dessa iniciativa, que mobiliza inúmeros facilitadores literários e se sustenta em uma robusta rede de colaboradores que forma uma das mais novas start-ups sociais do Rio Grande do Norte.

Reconhecimento nacional no Prêmio Innovare 2025

A relevância da iniciativa alcançou repercussão nacional em 2025, quando o Projeto  venceu, na categoria Juiz, o Prêmio Innovare, a mais representativa premiação do sistema de justiça brasileiro.

A edição, dedicada ao tema “tecnologia e eficiência”, recebeu 702 inscrições e selecionou 14 finalistas. As práticas foram avaliadas por consultores(as) especializados e por uma Comissão Julgadora composta por ministros de tribunais superiores, magistrados, membros do Ministério Público, defensores públicos, advogados e especialistas reconhecidos. O prêmio consolida mais de dez mil práticas mapeadas, constituindo um dos maiores repositórios de inovação judicial do país.

Seu Conselho Superior é formado por instituições e entidades de reconhecido prestígio no cenário jurídico nacional, entre elas: o Conselho Nacional de Justiça – CNJ; a Secretaria de Acesso à Justiça do Ministério da Justiça e Segurança Pública; a Advocacia-Geral da União (AGU); a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB); a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP); a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP); a Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE); o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR); a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA); além do Ministro Carlos Ayres Britto, contando ainda com o apoio institucional do Grupo Globo.

Fábio Ataíde recebeu o prêmio em nome do grupo

Uma rede que sustenta transformações

O projeto, integrante do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do sistema carcerário do Poder Judiciário do RN, consolidou uma rede plural de parcerias que inclui a Secretaria de Administração Penitenciária do RN, policiais penais, diretores(as) de unidades prisionais, educadores(as), a Pastoral Carcerária, a Livraria Manimbu, as editoras Unilivreira, Fábio Pê e OWL, o Fórum do Livro da Leitura e das Bibliotecas, a juíza Cinthia Cibele da 3ª Vara da Execução Penal da Comarca de Mossoró, o Escritório de Advocacia Gabriel Bulhões, o Motyrum Penitenciário, universidades e diversos coletivos literários.

Essa articulação garante suporte jurídico, editorial, acadêmico e social, tornando o projeto um exemplo concreto de como a literatura pode ser instrumento de reconstrução subjetiva, diálogo, responsabilização e retorno ao convívio social.

Como a sociedade pode apoiar esse movimento transformador

A continuidade e a expansão desse trabalho também dependem da mobilização da sociedade. Afirmou Fábio Ataíde, o coordenador geral do Projeto e vencedor da 22ª Edição do Prêmio Innovare : “Este prêmio nos fortalece e nos convoca a seguir. Precisamos publicar mais livros, muitos aguardam há anos. Seguimos trabalhando para transformar o Projeto Escritores e Escritoras do Cárcere em uma verdadeira start-up social de impacto exponencial, replicável em todas as unidades prisionais do RN e do Brasil”.

Em um contexto de crise profunda no sistema prisional, iniciativas como o Projeto Escritores e Escritoras do Cárcere demonstram que há caminhos reais de dignidade, justiça e reconstrução, caminhos que beneficiam toda a sociedade, especialmente a massa de jovens, homens e mulheres, que se avolumam no sistema carcerário.

Afinal, manter uma pessoa encarcerada, com baixa efetividade pelas altas taxas de reincidência, custou aos cofres públicos, em 2025, cerca de R$ 2.548,43 por mês, segundo dados do CNJ. Já a remição pela escrita permite reduzir até 48 dias de pena por ano, articulando desencarceramento com educação e a construção de novas possibilidades de vida. Importante destacar a importância da escruta acompanhada do devido incentivo à leitura, arrecadações e doações de livros, estruturação de bibliotecas nos espaços de prisão, apoio no processo de remição por leitura e formação de círculos de leitura e escrita. Essas ações do Projeto precisam ser fortalecidas no mais amplo processo de democratização do saber.

Fonte: saibamais.jor.br

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