Depois de exaustivas horas de trabalho, chegar em casa e finalmente… nada de descansar, ainda é preciso limpar tudo, fazer comida, lavar louça e, para quem tem filhos, cuidar dos pequenos. Não importa se você tem um companheiro para dividir as tarefas, na maioria dos casos, os afazeres domésticos recaem mesmo é sobre a mulher. O que já era impressão generalizada foi constatado, também, cientificamente por duas pesquisadoras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
“Somos tão condicionadas a essa rotina, por mais exaustiva que seja, que naturalizamos. Quando sentimos o cansaço é que paramos um pouco, levo muito isso para a terapia. É muita demanda, muita coisa para dar conta, tenho levado a questão do esquecimento. Minha terapeuta pondera que é muita coisa para pensar, ter que administrar a casa e filhos, sendo que sou mãe atípica”, relata Berna Azevedo, advogada.
Berna é mãe de duas jovens já adultas e de um menino de seis anos que tem autismo. Com uma rotina de 40 horas de trabalho semanal, mais os cuidados com a casa e os filhos, sobra pouco tempo para o cuidado pessoal.
“Para além da preocupação permanente sobre dispor das condições de suprir as necessidades/demandas da casa/família, afeta em grande medida a disponibilidade e disposição para o autocuidado, vida social, desejos pessoais. O nível de exigência dessa rotina de trabalho na rua e em casa, torna tão escasso o tempo livre, que o descanso se torna a prioridade, o que, por vezes, nos isola do espaço público, para além do trabalho. A condição de mãe atípica reforça ainda mais essa dinâmica: já me vi, por vezes, escolhendo atender a uma demanda do meu filho, em detrimento de uma minha, por mais urgente que ela fosse. E a gente, mesmo não devendo, se cobra por não dar conta de tudo. E a sociedade nos cobra não dar conta de tudo, nos cobra a ausência, nos cobra a presença…”, avalia Berna.
Com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2014, as pesquisadoras Luana Myrrha, professora do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem/UFRN), e a demógrafa Fernanda Felix, egressa do PPGDem/UFRN, mensuraram o tempo dedicado ao trabalho remunerado e aos afazeres domésticos. A pesquisa mostra que as mulheres têm uma carga horária remunerada cerca de 15% menor que a dos homens. Porém, na esfera doméstica, as mulheres dedicam 128% a mais de tempo aos afazeres domésticos que os homens.
Ao somar as duas jornadas, em uma semana, as mulheres trabalham, em média, 59 horas, enquanto os homens trabalham 51,5 horas. Em um ano, elas trabalham 358 horas a mais, o que numa jornada diária de 12 horas, representa 30 dias úteis a mais de trabalho por ano.
“Historicamente temos uma hierarquização nos papéis de homens e mulheres na nossa sociedade, que infelizmente ainda é perpetuada culturalmente. Há uma divisão sexual do trabalho que coloca as mulheres como as responsáveis pelo trabalho chamado reprodutivo, ou seja, o trabalho doméstico e de cuidados. Apesar da maior inserção das mulheres no trabalho produtivo (o trabalho fora de casa e remunerado) que antes era ocupado essencialmente pelos homens, os homens não se inseriram na mesma intensidade no trabalho dentro dos domicílios. Consequentemente as mulheres seguem assumindo geralmente os dois e sobrecarregadas”, observa a professora e pesquisadora Luana Myrrha.

A pesquisa também revela que mulheres com trabalho formal, por exemplo, trabalham 506 horas anuais a mais que homens na informalidade. No caso de mulheres com filhos menores de 14 anos, como a Berna, elas trabalham 501 horas a mais por ano que homens com filhos de idades variadas. Mulheres com renda de um a dois salários mínimos trabalham 636 horas anuais a mais que homens que ganham até um quarto de salário mínimo.
“O peso do trabalho doméstico no tempo total do trabalho das mulheres é consideravelmente mais elevado se comparado aos homens. Enquanto elas gastam 40% do seu tempo de trabalho total semanal com o trabalho doméstico e de cuidados, um trabalho não remunerado e invisibilizado, mas essencial para a sustentabilidade da vida humana, os homens gastam apenas 19,4% do seu tempo”, aponta Luana Myrrha.
Para a jornalista Luciana Tito, mãe de um casal de filhos, mesmo quando estava casada, as tarefas domésticas eram responsabilidade dela.
“Sobrecarga sempre teve. Quando era casada, os afazeres da casa ficavam sempre comigo, querendo ou não. Se a opção era ter empregada, eu que pagava, ele assumia outras contas, mas era uma responsabilidade minha. Quando separei e as contas não fechavam mais, passei a ter dois empregos, então cuidar de duas crianças e da casa era inviável. A sobrecarga passou a ser só minha depois da separação, tenho que trabalhar muito para manter a casa. Hoje ela não é mais tão arrumada quanto antes, quando tinha empregada. Mas, faço vista grossa porque entre ter uma casa de boneca e a cabeça descansada, vou optar pela minha saúde”, conta Luciana que passou nove anos casada e está separada há 14.
No caso da raça, os homens com menor jornada semanal total são os pardos e pretos (51,35 horas), enquanto as mulheres com maior jornada são as brancas (59,12 horas), uma diferença de quase 8 horas por semana, ou 373 horas anuais a mais para elas. O estudo também mostra que as mulheres brancas são mais exigidas em tempo de trabalho formal. No entanto, é preciso destacar que o trabalho formal geralmente exige bater o ponto, o que facilita a contagem mais apurada de horas de trabalho remunerado se comparado a um trabalhador informal.
“Essa responsabilidade pelo domicílio e pelos cuidados imposta às mulheres as sobrecarregam, o que geralmente afeta sua saúde mental e frequentemente impede que muitas delas se dediquem ao trabalho remunerado como gostariam”, aponta Myrrha.
Para a pesquisa, publicada na revista Política Hoje, a metodologia do estudo considerou pessoas com dez anos ou mais que estavam trabalhando e realizavam afazeres domésticos na semana de referência, totalizando uma amostra expandida de mais de 64 milhões de indivíduos.
Uma das simulações que o estudo permitiu fazer foi o da aposentadoria integral com 40 anos de contribuição para ambos os sexos. Neste cenário, as mulheres teriam que trabalhar, considerando todo o tempo de trabalho (remunerado + afazeres domésticos) o equivalente a 45,8 anos na medida masculina.
“É necessário visibilizar e reconhecer o trabalho de cuidados na nossa sociedade, além de redistribui-lo. O governo brasileiro recentemente aprovou a política Nacional de Cuidados que regulariza, valoriza e estrutura o cuidado como direito, trabalho e responsabilidade coletiva. Diante do processo de envelhecimento populacional, em que a demanda de cuidados dos idosos é crescente, uma política que visa redistribuir e valorizar o cuidado é necessária para reduzir a sobrecarga das mulheres e valorizar esse trabalho essencial para a sustentabilidade da vida humana”, pondera Myrrha.
A pesquisa lembra que a previdência social brasileira, desde a Constituição de 1988, incorporou uma perspectiva de gênero ao conceder cinco anos de vantagem às mulheres, reconhecendo a dupla jornada advinda da responsabilidade culturalmente imposta às mulheres pelo cuidado dos domicílios e das pessoas. Por isso, o estudo faz um alerta para as reformas que aproximam as regras para homens e mulheres. De acordo com as pesquisadoras, sem atacar as causas das desigualdades, essas mudanças tendem a agravar a situação econômica na velhice.
*Com informações de Paiva Rebouças – Agecom
Fonte: saibamais.jor.br