Natal comemora 426 anos de história nesta quinta-feira (25), data que, segundo a tradição cristã, coincide com o nascimento de Jesus. As comemorações pela fundação da capital potiguar costumam destacar suas belezas naturais, o perfil acolhedor do seu povo e momentos históricos como a chegada dos 10 mil soldados norte-americanos em 1942, depois da entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, ao lado dos Estados Unidos. Um traço da cultura natalense que é pouco lembrado, talvez por não combinar com o clima festivo do período, são as assombrações, os malassombros e os contos de terror que fazem parte das lendas urbanas que povoam o nosso imaginário popular.
A escritora Kalina Paiva, professora de literatura infantojuvenil no Campus Natal-Central do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), em vez de conto de fadas, cresceu ouvindo histórias de assombração.
A responsável por introduzi-la nesse “mundo do terror” foi sua avó, que desde a sua “mais tenra idade” lhe contava casos como o da “Viúva Machado”, um clássico das lendas urbanas de Natal.
Em vez de sentir medo, Kalina conta que fazia pequenas chantagens emocionais para que sua avó, ainda viva e lúcida do alto de seus 95 anos de idade, lhe contasse mais histórias. A professora reuniu algumas dessas lendas que cresceu ouvindo em seu livro “A Cruz da Cabocla: Aparições, Terror e Mistério”, lançado em 2025 pela Editora CJA.
O Casarão Amarelo da Viúva Machado

Um dos 15 contos que fazem parte da obra é “O Casarão Amarelo da Viúva Machado”, que fala sobre a história de Amélia Machado, uma mulher rica, sem filhos e que se tornou empresária do ramo de imóveis após a viuvez, mas, ao longo dos anos, também passou por um “processo de monstrificação” que a transformou em uma assustadora comedora do fígado de crianças desobedientes.
Taifeiro aposentado da Aeronáutica, o avô de Kalina virou corretor de imóveis e chegou a fazer negócios com Amélia Machado. “Vovô era quem vendia os terrenos para ela. Dona Amélia era uma pessoa muito reservada, muito doce, que não tinha nada a ver com essa imagem que se popularizou dela e que vovó me contava”, diz.
Para Kalina, essa “monstrificação” que transformou uma mulher bondosa em um “papa-figo” tem a ver com o contexto machista do final dos anos 1930. Naquela época, não era comum ver mulheres, ainda mais uma jovem viúva, assumindo os negócios da família.
“Era final dos anos 1930. Dona Amélia já era uma mulher bem abastada, que perdeu o marido muito nova e assumiu os negócios dele. O marido dela costumava dar festas, mas quando ela ficou viúva, cortou esse acesso que a sociedade tinha à casa dela”, narra.
Manoel Duarte Machado, o marido da “Viúva Machado”, era um português nascido em Santarém, em 21 de junho de 1881. Um dos maiores empreendedores que o Rio Grande do Norte conheceu na primeira metade do século XX, precursor do mercado imobiliário e do ramo de supermercados, ele faleceu no Rio de Janeiro, no dia 20 de novembro de 1934, foi sepultado lá, mas depois seus despojos foram trazidos para Natal.
Vida reservada de Amélia Machado virou combustível para lenda urbana
A vida reservada de Amélia Machado, após a morte do marido, virou motivo de especulações na cidade. Além disso, ela tinha uma deformidade física na cabeça, que contribuiu para que a imagem assustadora, cercada de mistério e de medo, que se construiu em torno dela se consolidasse no imaginário coletivo.
“O que vovô conversava com os meus tios é que ela era uma pessoa doce, que gostava da intimidade dela. Eu acho que, justamente por ela não se expor, surtiu o efeito contrário”, avalia.
Kalina compara a “monstrificação” da Viúva Machado com o que aconteceu com o Conde Vlad III, príncipe da Valáquia, na atual Romênia, que deu origem ao mítico personagem do Drácula, criado pelo escritor irlandês Bram Stoker, em um romance homônimo publicado em 1897.
“O Conde Vlad era uma pessoa reclusa, que tinha também problemas de saúde que o impediam de andar durante o dia. Então, à noite, ele se sentia melhor pra andar, mas as pessoas não sabiam disso e começaram a especular, criar lendas e fantasiar sobre ele ser um suposto vampiro”, diz.
Família tentou, em vão, desvincular imagem da viúva de lendas envolvendo seu nome
No caso de Amélia Machado, a família até que tentou desvincular a imagem dela da lenda urbana criada em torno do seu nome, mas não adiantou. De acordo com Kalina, o caseiro do palacete onde a viúva e seu marido moraram, localizado na rua ao lado da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no bairro de Cidade Alta, contou que os familiares dela mantiveram o casarão aberto por um tempo, mas depois decidiram fechá-lo.
“Eu soube através do caseiro que os parentes dela estavam comemorando o São João, mas ainda restaram umas brasas da fogueira que eles fizeram em frente a casa. No dia seguinte, um carro da polícia estacionou em frente e o veículo pegou fogo. A história se espalhou, foi mais um elemento que se somou às narrativas em torno da viúva e só contribuiu para aumentar o mito sobre ela. Depois desse episódio, os irmãos decidiram que ninguém mais moraria lá”, conta.
Kalina cita mais um episódio que aumentou a fama da Viúva Machado. Ela diz que depois que escreveu o conto sobre a história de Dona Amélia, soube através de uma aluna que a Ecocil havia comprado uns terrenos no prolongamento da Avenida Prudente de Moraes. Quando a empresa começou a desmatar a área para construir seus empreendimentos, descobriu uma casa de campo que tinha pertencido à esposa de Manoel Duarte Machado.
“Essa casa tinha uma passagem subterrânea que levava até o Rio Pitimbu. Naquele período da Segunda Guerra Mundial, quando Natal foi usada como base dos Estados Unidos, havia um medo de um possível bombardeio na cidade. Então, usando a lógica, eu imagino que essa passagem subterrânea era um refúgio, mas isso terminou sendo associado ao mito da Viúva Machado. As pessoas acreditavam que era para lá que ela levava as crianças depois de comer o fígado delas”, explica.
Kalina mergulhou na história de Amélia Machado porque queria entender um pouco mais sobre o surgimento das lendas urbanas, que muitas vezes nascem a partir da história de pessoas reais, mas são transformadas com o tempo até ganhar ares míticos.
Esses contos que misturam assombrações, aparições e terror, segundo a professora, são usados muitas vezes como “instrumento pedagógico” pelas mães, que fazem do medo uma forma de controlar os filhos.
A Morada dos Mortos
Outro conto presente em “A cruz da Cabocla” é “A Morada dos Mortos”, que trata de outra conhecida lenda urbana de Natal: as aparições no Cemitério do Alecrim.
Kalina revela que sua família viveu uma situação que muita gente classificaria como assustadora em meados dos anos 1990. Quando ainda trabalhava como sargento da Polícia Militar, seu pai alugou uma casa no Alecrim, seu pai alugou uma casa no Alecrim.
A escritora conta que sua irmã “sempre ouvia um choro de criança” no local. “A gente passou dois anos morando nessa casa, mas nunca conseguimos dormir tranquilamente. O meu irmão nunca dormiu no quarto dele, sempre ia para o quarto da gente. Quando estávamos para nos mudar, uma vizinha perguntou se nunca tínhamos escutado alguma coisa estranha nessa casa”, descreveu.
A irmã, segundo Kalina, falou sobre o choro de criança que sempre ouvia. A vizinha, então, perguntou se a família não sabia da história da casa, aumentando a curiosidade da família.
“Ela disse que lá funcionou uma clínica clandestina de aborto. O quarto que a gente dormia era a sala de espera. O quarto de mamãe era onde faziam o procedimento. Mamãe não ouvia nada porque não tinha a mediunidade aguçada como a da minha irmã”, revela.
A parteira que distribuía ramos de alecrim durante cortejos fúnebres e virou “assombração”
Kalina afirma que quando começou as escrever os contos de malassombros, lembrou dessa história vivenciada pela sua família e decidiu pesquisar mais sobre o Alecrim. Foi só então que descobriu que, antes de ser oficialmente criado, o bairro era conhecido como “A Morada dos Mortos”.
“O Alecrim, antes de ser um bairro, era apenas um cemitério. Natal, naquela época, se limitava praticamente à Ribeira e às Rocas. Quando morria alguém, o cortejo saía desses dois bairros até o Cemitério do Alecrim”, conta.
Durante os cortejos fúnebres, uma senhora chamada Donana, a quem a escritora descreve no livro como “uma parteira experiente, versada nas artes das ervas e em misticismo”, distribuía ramos da planta homônima do bairro às pessoas que seguiam a marcha lenta rumo ao cemitério.
Depois de morrer, essa senhora, segundo asseguravam muitos populares do bairro, passou a aparecer para as pessoas, tornando-se mais uma personagem das lendas urbanas de Natal.
Beber os mortos
Em sua tese de doutorado “Imaginários da Morte: poéticas das imagens em cemitérios brasileiros”, defendida em 2015, o pesquisador da área de Ciências Sociais da UFRN, Genison Costa de Medeiros, relata que era comum as pessoas “beberem os mortos” no Cemitério do Alecrim.
“Ele cita que, certa vez, um grupo de pessoas que estava bebendo um morto terminou ficando preso no cemitério. No outro dia, quando já estava amanhecendo, uma pessoa subiu no muro do local no momento em que passa um vendedor de pão. Ela perguntou as horas, depois ainda pediu um pão ao vendedor, que se assustou, jogou o cesto de pão e saiu correndo achando que era um morto”, narra Kalina.
O vendedor de pão tratou de espalhar a história da assombração que jurava ter visto no Cemitério do Alecrim. Desde então, o lugar entrou para o panteão das mitologias natalenses, tornando-se conhecido pelos “fantasmas” que, segundo o imaginário popular, costumam assustar quem passa por lá.
A Cruz da Cabocla
O conto que dá título ao livro de Kalina faz referência a uma lenda que remete à história do bairro de Felipe Camarão, na Zona Oeste de Natal, que segundo a escritora começou a circular no século XIX.
A Cabocla, ainda segundo a lenda, teria sido uma indígena que fugiu da seca no interior com seus dois filhos, que morreram desidratados nos braços da mãe ao chegarem a Natal.
“No local onde ela morreu, ergueram um monumento e as pessoas começaram a fazer orações e alcançar graça e milagres através da Cabocla”, conta a autora, segundo quem a lenda data da época em que o bairro era chamado de “Comunidade Peixe-Boi”.
“A Igreja Católica, temendo perder espaço para essa crença, retirou o monumento da Cabocla e, no lugar dele, colocou uma cruz para sincretizar a Cabocla com Santa Luzia, que não por acaso é a padroeira do bairro do Felipe Camarão”, complementa Kalina.
A escritora afirma que, apesar da tentativa de apagamento pela Igreja Católica, as pessoas continuam cultuando a Cabocla. A cruz, no entanto, que ficava em frente à Capela de Santa Luzia, não existe mais.
“O sobrenatural sempre me encantou”, diz escritora
Dizendo “universalista”, que segundo ela é a pessoa que “agrega todas as crenças”, Kalina diz que o sobrenatural sempre a “encantou”.
“Eu vejo que as pessoas procuram explicar aquilo que a ciência não dá conta, quando a gente não tem uma explicação plausível, o ponto de fuga é o sobrenatural. Eu sempre achei muito curioso”, comenta a autora, que disse ter feito um curso de tanatologia para “tentar entender como é a relação humana com a morte”.
“A morte é um balizador pra gente, assim como a dor, a tortura. Esses sentimentos são os sentimentos que movem a gente, principalmente quando você é leitor de terror, quando você é leitor de suspense. Esse tema me encantou”, acrescenta.
Essa sensibilidade para o sobrenatural, segundo Kalina, a inspira na hora de escrever. “Tem um dos contos, chamado ‘Colar de Esmeraldas’, em que a experiência da personagem é a mesma que eu tive quando participei de uma cerimônia de Ayahuasca”. Depois que eu tive um câncer de mama em 2019, visitei o terreiro de Candomblé, tive vivências na Umbanda, mas a experiência com a Ayahuasca foi um negócio fora de série mesmo, porque você alarga a sua percepção sobre as coisas”, confidencia.
Kalina assegura que, assim como sua avó lhe contava os casos de malassombros que a inspiraram a se tornar uma autora de terror, ela conta as mesmas histórias que ouvia na infância para sua neta Alice.
“Ela adora e sempre pede: ‘Vovó, conta aquela outra’”, diz a autora sobre a neta, que parece ser tão destemida quanto a avó era na infância. No que depender delas, pelo visto, as lendas urbanas continuarão fazendo parte do imaginário popular natalense por muitas gerações.
“As narrativas são um legado, as crianças são guardiãs delas. Eu fui uma criança que guardei as narrativas da minha avó e hoje estou repassado para a minha neta. Eu sei que ela um dia vai seguir adiante contando as histórias para a filha ou o filho dela, se ela optar por ter filhos”, completa.
Fonte: saibamais.jor.br