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câncer de próstata também é tema para mulheres trans e travestis

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Novembro Azul: câncer de próstata também é tema para mulheres trans e travestis

Em 2023, durante uma bateria de exames de rotina, a cartunista Laerte Coutinho ouviu da geriatra uma frase que mudaria sua vida: “Você está com câncer”. O resultado alterado do PSA (Antígeno Prostático Específico) levou a uma biópsia que confirmou o diagnóstico de câncer de próstata, um tumor frequentemente associado a homens cis, mas que também afeta mulheres trans e travestis, ainda de forma pouco discutida nas campanhas de prevenção.

Laerte, hoje com 73 anos, vive publicamente como mulher há mais de uma década e tornou público recentemente seu diagnóstico. A cartunista lembra que carregar uma próstata, órgão presente em corpos designados masculinos ao nascer, é um dado fisiológico incontornável. “Mulheres trans precisam entender que possuem próstata e um organismo que precisa ser cuidado”, afirma em entrevista a Folha de São Paulo. “Carrego uma cultura masculina que diz que não precisamos ir ao médico. É um mito que mata”, relata.

Seu caso expõe um tema urgente, o câncer de próstata é uma realidade também para pessoas trans, mas ainda cercado de tabu, desinformação e negligência tanto da sociedade quanto do sistema de saúde.

Mulheres trans podem ou não fazer terapia hormonal, cirurgias ou outras intervenções durante a transição. Mesmo após cirurgias de redesignação sexual, a próstata permanece, já que sua remoção envolve riscos altos e não traz benefícios diretos para a percepção de gênero. O urologista João Brunhara explica que a hormonização com estrogênio reduz a produção de testosterona e, com isso, pode diminuir o risco de câncer de próstata, mas não eliminá-lo completamente. Estudos sugerem que o risco possa ser de duas a dez vezes menor do que o de homens cis, embora as evidências ainda sejam limitadas. Para mulheres trans que não fazem hormonização, como é o caso de Laerte, o risco permanece equivalente ao de homens cis. Por isso, a recomendação de rastreamento é semelhante: PSA anual a partir dos 50 anos, ou 45 para quem tem histórico familiar, obesidade ou é pessoa negra.

Dificuldade e tabu

A reportagem ouviu a conselheira estadual de saúde e coordenadora do Centro Acadêmico de Saúde Coletiva da UFRN, Lune Jaci, que acompanha de perto os desafios do acesso à saúde no Rio Grande do Norte. Travesti, ela avalia que o diagnóstico de Laerte escancara uma lacuna estrutural: faltam estudos sobre saúde de pessoas trans, especialmente das que se hormonizam, e essa ausência é amplificada por forças políticas que tentam barrar a hormonioterapia.

A realidade nas UBS do estado, segundo Lune, é marcada por obstáculos que vão desde o preconceito até a desinformação. A atenção primária deveria garantir cuidados no próprio território, mas muitas mulheres trans evitam marcar consultas por medo de violência institucional. Soma-se a isso a resistência de médicos em prescrever bloqueadores e hormônios, muitos deles inseguros por falta de conhecimento científico. Os que se dispõem a aprender também enfrentam outra barreira: a inexistência de protocolos claros para orientar a prática. O custo alto da hormonização, que não é plenamente ofertada pelo SUS, leva muitas pessoas a interromper o tratamento, agravando vulnerabilidades.

Lune ressalta que ambulatórios especializados, como o Ambulatório TT, em Natal, e o Ambulatório Estadual Murilo Gonçalves, no Instituto de Medicina Tropical, são fundamentais, mas não deveriam substituir o atendimento nas unidades básicas. “Esses serviços existem porque não conseguimos ser atendidas nas unidades de saúde do território, mas o ideal é que o cuidado acontecesse lá. O SUS não pode criar uma saúde paralela”, afirma. Na região Oeste, Mossoró conta com serviços vinculados à UERN e ao Hospital da Mulher, que ampliam o acesso, mas o estado ainda enfrenta limitações significativas: não há cirurgias do processo transexualizador, o atendimento especializado é concentrado em apenas duas cidades e quem vive no interior precisa viajar longas distâncias ou recorrer a outros estados para conseguir cirurgias.

A falta de preparo dos profissionais também gera situações recorrentes. Lune relata que muitas vezes qualquer sintoma é atribuído ao uso de hormônios, independentemente da queixa. “Se a pessoa trans chega com dor de cabeça, dor no estômago ou uma fratura, o profissional culpa o estrogênio ou a testosterona e suspende o tratamento, mesmo sem relação nenhuma. Isso gera medo e faz com que evitemos procurar atendimento”, diz.

Questionada sobre campanhas de Novembro Azul que incluam explicitamente mulheres trans e travestis, Lune diz nunca ter visto nenhuma ação governamental nesse sentido. A única iniciativa que recorda é a campanha da ATREVIDA/RN, liderada pela ativista Jaqueline Brasil, já falecida. Fora isso, o tema permanece invisível.

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A história de Laerte aponta para um diagnóstico social grave, mulheres trans têm próstata, têm risco de câncer e têm direito ao cuidado, mas continuam fora do Novembro Azul e de grande parte das políticas públicas de prevenção. O preconceito, a falta de formação adequada dos profissionais e a ausência de protocolos específicos criam um cenário em que o diagnóstico precoce é exceção.

Fonte: saibamais.jor.br

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