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“Escritores do Cárcere” transforma vidas em Alcaçuz e disputa prêmio

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Atividade mediada com participação de Newton Albuquerque e Carlos Romeu – Foto: Seap/RN

Iniciativa surgida em 2012, o projeto Escritores do Cárcere incentiva a literatura dentro dos presídios do Rio Grande do Norte e já permitiu a publicação de nove livros de pessoas privadas de liberdade. O projeto também está entre os finalistas do Prêmio Innovare 2025, uma das mais importantes premiações do sistema de Justiça do Brasil, que terá os vencedores revelados em dezembro. 

O Escritores do Cárcere é realizado dentro da Penitenciária Estadual Rogério Coutinho, no Complexo de Alcaçuz, em Nísia Floresta. A iniciativa é do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN), com apoio da Secretaria de Estado da Administração Penitenciária (SEAP) e da Polícia Penal.

De acordo com o juiz Fábio Ataíde, um dos idealizadores da iniciativa, ao lado da servidora Guiomar Veras, o projeto surgiu acompanhando inicialmente Newton Albuquerque, publicitário paulista que passou 10 anos em Alcaçuz e em 2019 lançou a obra “A Escolha Errada”. O livro relata como o publicitário foi parar na cadeia por tráfico de drogas e e o que viu durante o massacre de Alcaçuz, episódio sangrento ocorrido em 2017 que deixou 26 mortos. 

“O objetivo era publicar o livro desse escritor, não era nem exatamente criar um movimento literário ou um projeto. Ninguém tinha noção naquela época, mas o fato é que Newton Albuquerque estimulou que outras pessoas, também presas no cárcere, começassem a escrever. Isso foi naturalmente, a gente foi observando, e isso gerou um movimento literário e com apoiadores que começaram a incentivar essa produção de escrita e fazer com que outras pessoas também se estimulassem a fazer o mesmo”, conta Fábio Ataíde.

Hoje, Newton Albuquerque já está fora das grades, mas continua ligado ao projeto e incentivando novos escritores. Recentemente, mediou uma atividade com Carlos Romeu — outro egresso do sistema prisional — junto a internos selecionados pela Comissão Técnica de Classificação (CTC), todos com excelente conduta carcerária e aptos às atividades de educação e trabalho.

Atividade mediada com participação de Newton Albuquerque e Carlos Romeu – Foto: Seap/RN

“Somos egressos do sistema carcerário que se tornaram escritores, e mediamos a roda de conversa entre os outros escritores do cárcere em forma de incentivo”, explicou Newton. 

Além de Alcaçuz, Albuquerque também passou pelo Presídio Federal de Mossoró, e diz que foi lá que conseguiu identificar sua aptidão pela escrita e não só pela leitura.

“Confesso que a literatura transformou a minha vida no cárcere”, aponta.

O escritor segue convicto de que é possível mudar vidas a partir da literatura, mesmo com as fragilidades do sistema. 

“Vejo através das oportunidades, da educação, da literatura uma forma de transformar vidas no sistema penitenciário. O que a gente precisa é dar oportunidades e capacitar esses homens a entenderem que elas são capazes de sair homens melhores”, aponta.

Nove livros publicados

Em 13 anos de existência, o projeto já levou ao mundo nove livros — um 10º foi produzido e registrado, mas a editora não quis publicar devido ao crime cometido pelo autor — e proporcionou a venda de 30 mil exemplares. 

Outros tantos aguardam a publicação, diz o juiz Fábio Ataíde. Uma das dificuldades é a financeira, já que o projeto não recebe financiamento. 

“A Escolha Errada”, de Newton Albuquerque, é uma das nove obras publicadas por projeto Escritores do Cárcere – Foto: divulgação

“O projeto proporciona que o escritor entre no processo de acompanhamento e gere reflexões internas durante a produção da escrita. Isso é avaliado, produzido pareceres, e esses pareceres podem fazer a remissão da pena, o abatimento da pena. Nós já temos penas abatidas por conta da produção da literatura de acordo com as decisões judiciais que são dadas em cada um dos casos”, explica o juiz do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF).

Potiguar na Academia Brasileira de Letras do Cárcere

O Escritores do Cárcere já produziu frutos que chegaram à Academia Brasileira de Letras do Cárcere (ABLC). A potiguar Amanda Karoline, natural de Macaíba, é a integrante da cadeira número 11 da ABLC. Ela é a autora do livro “De Tambaba à prisão: uma trama real de violências e abusos no paraíso do nudismo brasileiro”. A obra já vendeu mais de três mil exemplares.

Amanda foi presa por ter contratado um pistoleiro para executar seu marido, com quem foi casada por oito anos, após uma rotina de violência que, segundo ela, já começou no primeiro mês de matrimônio. Atualmente, a potiguar está em regime aberto.

No exemplar, Amanda conta sua história após ser encorajada pela policial penal Joana Coelho. Ela diz à reportagem que, até entrar no sistema prisional em 2016, nunca tinha sequer pisado dentro de uma delegacia. A condenação em júri popular a 20 anos de prisão, ocorrida em em 2018, a revoltou. A escritora diz que a unidade em que ficou presa era pequena, sem nenhuma oficina e com poucas atividades para remissão, com vagas já ocupadas. Os livros foram uma forma de não ficar parada dentro da cadeia.

História de Amanda a levou a ser acadêmia da Academia Brasileira de Letras do Cárcere – Foto: divulgação

“Quando eu recebi essa sentença, me revoltou porque a gente vê todos os dias homem matar mulher, estuprar, espancar, e a pena dele ser mínima ou muitas vezes ele responder esse crime em liberdade. Então, uma policial [Joana Coelho] me encontrou revoltada, foi ela que me incentivou à escrita e a escrita me libertou de tantas mazelas, me curou de tanto trauma”, relata. 

Esse primeiro livro a que ela teve acesso foi “Prisioneiras”, de Dráuzio Varela, que conta a vida nas prisões femininas. 

“Eu queria fugir daquela realidade que eu me encontrava”, diz Amanda. O “Prisioneiras”, para ela, “foi fundamental para eu pegar gosto pela leitura e a importância de quanto a leitura e a escrita nos liberta”, explica. 

Finalista do Innovare 2025

O Prêmio Innovare reconhece e dissemina práticas transformadoras que se desenvolvem no interior do sistema de Justiça do Brasil. O Innovare busca identificar ações concretas que signifiquem mudanças relevantes em antigas e consolidadas rotinas e que possam servir de exemplos a serem implantados em outros locais. O Escritores do Cárcere foi uma das 14 iniciativas escolhidas em meio a mais de 700 projetos inscritos.

“Estar entre os finalistas do Innovare é uma coisa espetacular e inexplicável, porque estamos falando de um projeto sem financiamento, com apoio de um grupo. Não estamos falando de um projeto que tenha uma estrutura. Nós temos leitores e escritores que se uniram e que utilizam alguma metodologia, mas dentro de um projeto artesanal. Não estamos nada dentro de uma abordagem industrial. Então, muitos desses livros são escritos à mão. Depois da escrita à mão, esses textos são convertidos, revisados, analisados, retornados. Retornam, há uma censura interna dentro do projeto, uma censura literária interna sobre o que deve ser. Então, um livro desse leva muito tempo para ser produzido. Muitos livros levam mais de ano em todo o processo. Então, esse caráter artesanal e essa dedicação humanitária fazem com que esse seja um projeto único e baseado na literatura”, comemora Fábio Ataíde.

“Estamos falando de um país que cada vez seus percentuais de leitura diminuem, que não lê, e nós estamos dizendo que nós temos escritores que estão encarcerados. Quem são essas pessoas que estão contando a história? A história, inclusive, do sistema carcerário do Rio Grande do Norte, a história da violência na sociedade. Porque no final das contas é isso que essas pessoas estão contando”, destaca o magistrado.

Escritores e contadores

As obras feitas a partir da iniciativa em Alcaçuz não contam apenas a história dos escritores, mas também de outras pessoas privadas de liberdade, por meio dos contadores de história.

“Os escritores, às vezes, não contam só as suas histórias, mas eles contam as histórias de outras pessoas, de contadores que não sabem escrever, não podem escrever, são analfabetos ou não têm habilidade. Então, nós temos diversos livros com as histórias dos contadores”, explica Ataíde.

Entre as obras, há todo tipo de livro, como ficção e autobiográficos. O último lançamento do projeto ocorreu este mês em Caicó, com a obra “Segredos da Minha Existência na Sociedade Criminosa”, da escritora Gilmara Cecília.

A obra retrata a voz de uma mulher que reconstrói sua trajetória por meio da escrita.

Além disso, o livro lança luz sobre vivências e questões sociais que atravessam especialmente a juventude da região do Seridó, oferecendo um forte potencial de reflexão em ambientes educativos, culturais e comunitários.

Fonte: saibamais.jor.br

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