Em 2025, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte aprovou uma série de leis que transformaram festas populares, tradições, igrejas, grupos culturais e até paisagens naturais em patrimônios oficiais do Estado. A iniciativa atribui a diferentes expressões do território potiguar um selo de proteção e reconhecimento, com o objetivo de preservar a memória coletiva e garantir que as próximas gerações conheçam a riqueza cultural do RN.
Nesse contexto, o Estado passou a reconhecer oficialmente o ofício das catadoras de mangaba, culturalmente conhecidas como mangabeiras, como Patrimônio Cultural Imaterial. A medida foi instituída pela Lei nº 12.126/2025, sancionada pela governadora Fátima Bezerra neste ano, e representa um avanço histórico na valorização de uma prática tradicional exercida majoritariamente por mulheres nos tabuleiros costeiros potiguares.
O ofício das mangabeiras está diretamente ligado ao extrativismo sustentável da mangaba, fruta nativa das restingas, dunas e tabuleiros do litoral nordestino. No Rio Grande do Norte, essa atividade estrutura comunidades inteiras, articulando trabalho, organização familiar, sociabilidade e transmissão de saberes.
Essa centralidade feminina no extrativismo da mangaba é amplamente documentada por pesquisas acadêmicas. Um dos estudos de referência é o artigo “O extrativismo de mangaba é ‘trabalho de mulher’? Duas situações empíricas no Nordeste e Norte do Brasil”, desenvolvido pela socióloga Dalva Maria da Mota, pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental, em parceria com pesquisadores da Embrapa Tabuleiros Costeiros, da Universidade Federal do Pará e de instituições do Nordeste. O trabalho foi publicado nos Novos Cadernos NAEA e reúne dados de pesquisas de campo realizadas entre 2003 e 2008.
O levantamento envolveu 268 catadores e catadoras nos estados de Sergipe, Bahia, Pernambuco, Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte. Os dados apontam que cerca de 75% das pessoas envolvidas na coleta da mangaba são mulheres, percentual que varia conforme o território. No caso do RN, o estudo registra uma participação masculina um pouco mais presente do que em Sergipe ou Alagoas, sobretudo em áreas onde a demanda pelo fruto aumentou, mas ressalta que as mulheres seguem dominando a atividade e concentrando maior experiência no manejo da planta.
De acordo com a pesquisa coordenada por Dalva Mota, no Rio Grande do Norte a presença de homens na catação ocorre principalmente quando as áreas de coleta são mais distantes ou quando há escassez de outras fontes de renda, enquanto o trabalho cotidiano da coleta, da pós-colheita e da preparação do fruto permanece sob responsabilidade feminina. O estudo também identifica que, mesmo quando a mangaba responde por até 70% da renda familiar em algumas comunidades, o trabalho das mulheres segue sendo socialmente tratado como complementar.
As pesquisas mostram ainda que o conhecimento sobre a mangabeira é transmitido principalmente entre mulheres e crianças, por meio da oralidade e da prática. Meninas acompanham mães e avós desde cedo, aprendendo a reconhecer os diferentes estágios do fruto, a respeitar o ciclo da planta e a evitar danos às árvores. No RN, esse processo ocorre tanto em áreas de uso comum quanto em terras privadas, em regimes de meias ou arrendamento.
Autora do projeto que originou a Lei nº 12.126/2025, a deputada estadual Divaneide Basílio ressaltou que o reconhecimento do ofício das mangabeiras é resultado de um processo de diálogo com as comunidades tradicionais e de valorização dos saberes populares. Segundo a parlamentar, a medida reconhece não apenas uma atividade econômica, mas um patrimônio vivo do povo potiguar.
“O reconhecimento do ofício das catadoras de mangaba como Patrimônio Cultural Imaterial do Rio Grande do Norte é fruto de uma escuta qualificada e do respeito a um saber que atravessa gerações. Estamos falando de um trabalho essencial, realizado majoritariamente por mulheres, que fortalece a cultura popular, garante segurança alimentar e preserva uma história ancestral profundamente ligada ao nosso território”, explica ela.
“Além disso, a mangaba é uma espécie ameaçada de extinção, típica das regiões litorâneas e dependente da mata nativa para sobreviver. Ao proteger o ofício das mangabeiras, também reafirmamos o compromisso com o ambiente e com o modo de vida dessas mulheres que cuidam da terra enquanto dela tiram sustento e dignidade”, afirmou Divaneide em entrevista à Agência Saiba Mais.
Além da coleta, as mangabeiras dominam as etapas de pós-colheita, como lavagem, seleção, encapotamento e amadurecimento do fruto, atividades tradicionalmente realizadas no espaço doméstico. Estudos da Embrapa Tabuleiros Costeiros apontam que essas etapas são fundamentais para a qualidade do produto e para o abastecimento de feiras, mercados e agroindústrias artesanais no Nordeste, incluindo o Rio Grande do Norte.
No RN, a mangaba é transformada em sucos, sorvetes, doces, geleias, bolos, biscoitos, compotas e licores, fortalecendo a economia local e mantendo viva a culinária tradicional. Grande parte das catadoras também atua como pescadora artesanal, o que reforça a integração entre extrativismo vegetal, pesca e modos de vida tradicionais do litoral.
Apesar de sua relevância cultural e econômica, o ofício das mangabeiras enfrenta ameaças antigas, como a expansão urbana, a privatização de áreas antes comuns e a redução dos territórios de coleta. Reportagens e pesquisas acadêmicas já alertavam, desde a década de 2000, para o risco de desaparecimento da atividade em áreas do litoral potiguar, especialmente em regiões impactadas pela urbanização acelerada.
Ao reconhecer oficialmente o ofício das mangabeiras como Patrimônio Cultural Imaterial, o Rio Grande do Norte consolida um passo importante na proteção dos saberes tradicionais, na valorização do trabalho das mulheres e na preservação de uma prática que segue viva, apesar das pressões sobre os territórios e sobre as comunidades que deles dependem.
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Fonte: saibamais.jor.br
