Todas as pessoas grandes foram um dia crianças,
mas poucas se lembram disso.
Exupéry
Sou uma fã ardorosa dos livros infantis. O carinho se deve ao fato de que foram eles que me trouxeram para a literatura, portanto, seguem recebendo o meu afeto e respeito. Tenho uma boa coleção em casa, inclusive de clássicos da infância, como “O gato malhado e a andorinha Sinhá, de Jorge Amado, “Ou isto ou aquilo”, de Cecília Meireles e “O maribondo amoroso”, de Nati Cortez, considerada uma das precursoras da literatura infantil no estado.
Falo de respeito porque considero história para criança coisa séria e relevante, não uma literatura menor, como muitos a entendem (talvez por terem uma visão “adultocêntrica” da vida). Acho que parte da cultura ocidental considera a infância apenas uma preparação, enquanto a vida adulta representa a verdadeira existência humana. Talvez isso explique a falta de atenção da crítica literária à categoria que mais vende mundo afora.
Não somente a crítica especializada, como também instituições como as academias de letras quase não têm representantes que escrevem para a faixa etária dos 0 aos 12 anos. Fora honrosas exceções, parece que somente os autores da poesia clássica, do romance psicológico, ou do ensaio histórico, tornam-se imortais. Aqui no RN tivemos Carolina Wanderley (que publicou em 1926, “Rimário infantil”, o 1º livro para crianças no estado) e só. Escritores como a falecida Nati Cortez, Salizete Freire e José de Castro, grandes nomes da poesia voltada à infância, não estão lá.
Aliás, nesse quesito, a União Brasileira de escritores saiu na frente quando propôs que a data de nascimento de Nati, 8 de setembro, fosse considerada um marco para datas comemorativas voltadas à promoção da leitura. Assim, em 2016, tanto a Câmara de Vereadores, quanto a Assembleia legislativa aprovaram a data respectivamente como o “Dia Estadual do Livro Infantojuvenil” e o “Dia Municipal do Livro Infantojuvenil”.
Se estranhamos essa falta de representatividade, imagine quando nos deparamos com a história do livro infantil: a ideia de produzir obras especialmente para os pequenos é relativamente recente. Aliás, a própria infância, como fase especial da vida, só passou a ser reconhecida muito tarde. Há 300 anos os poucos e “privilegiados” garotos alfabetizados liam os mesmos enredos violentos e moralizantes dos adultos.
O livro infantil surgiu a partir dos séculos XVII e XVIII, com autores como Perrault, os irmãos Grimm e Andersen, que ajudaram a transformar histórias tradicionais no que hoje chamamos contos de fada. No século XX, as obras ganharam forma moderna — com ilustrações, diversidade temática e respeito à sensibilidade da criança — consolidando-se como um campo literário autônomo.
Hoje vemos movimentos que desfazem preconceitos e inspiram novos olhares: o Nobel reconhecendo temas infantis; a presença forte de autores em feiras internacionais; a tradução massiva de escritores brasileiros (como Ana Maria Machado, eleita na ABL em 2003, traduzida para mais de 20 idiomas e vencedora do Prêmio Hans Christian Andersen ― considerado o Nobel da literatura infantil).
Na minha opinião, Bartolomeu Campos de Queirós é uma das maiores referências em literatura contemporânea brasileira. É como se a capacidade desse mineiro (que cresceu na cidadezinha de Papagaio), fosse como um arranha-céu que quase encosta nas nuvens. Olhem o que ele faz nesse trecho que retrata o diálogo entre um menino e seu avô:
– O tempo? Eu nunca vi o tempo.
– Também não. Ninguém vê o tempo. O tempo não para. Passa ligeiro e ninguém consegue tocá-lo. Ele tem medo de não atender aos nossos pedidos, por isso não nos escuta.
– Passa mais depressa que voo de passarinho?
– Muito, muito mais. Passarinho pousa, repousa, dorme, torna a voar e volta ao ninho. O tempo não tem ninho. Ele está sempre acordado, viajando e vigiando tudo…
O texto acima nos mostra que esse tipo de literatura exige simbolismo, capacidade de síntese e, principalmente, um certo entendimento sobre a infância. Um bom livro é uma porta aberta para a imaginação, para o afeto e para o mundo.
É preciso ressaltar que histórias potentes combinam elementos essenciais: o primeiro é a honestidade emocional. Crianças merecem uma narrativa sincera, não, idealizada. Quando os sentimentos têm profundidade e os conflitos são significativos, mesmo que simples, eles enriquecem quem lê.
Um ótimo livro também permite que os pequenos se reconheçam, se questionem e se percebam acolhidos. Além disso, ele respeita o tempo da infância, mas não a coloca numa redoma: apresenta o mundo, em suas luzes e sombras, de modo sensível, cuidadoso e acessível.
Outro elemento indispensável é a imaginação visual. As ilustrações precisam convidar o olhar, provocar curiosidade e criar atmosferas que permaneçam com o leitor depois da última página. Ilustrações de qualidade não apenas embelezam: elas contam a história junto com o texto, ampliando sentidos, oferecendo pistas e descobertas.
Por fim, talvez o mais importante: literatura para crianças aproxima gerações. Permitem que os adultos e os pequenos leiam juntos, compartilhem interpretações, risadas, inquietações e memórias. Essa ponte é, muitas vezes, o maior presente que uma história pode oferecer.
Há muita gente escrevendo hoje no RN nessa categoria. E tem coisas legais, (maravilhosas do ponto de vista estético), divertidas, que a gente pensa: “ok, isso é realmente bom!”. Citar pessoas é complicado porque corre-se o risco de deixar de fora gente que merece demais um lugar ao sol. Por isso, escreverei apenas um nome ao final dessa crônica. O único que esteve em todas as listas que pedi aos amigos: o do mossoroense Antônio Francisco.
Gosto de tudo o que já li dele, mas principalmente da sua vocação para tratar de temas sociais, enquanto apresenta imagens mentais combinadas a rimas fortes e significativas. O mestre, reconhecido como um dos maiores expoentes do cordel desde Patativa do Assaré, nos leva ao sertão, nos apresenta bichos e plantas, reinos encantados, situações éticas, engraçadas, ou comoventes enquanto aponta os caminhos da justiça, da paz, da preservação ambiental e do afeto.
Antônio não tem apenas talento, tem um poder reservado a poucos artistas: o de nos transportar desse mundo durante o tempo da leitura e de nos trazer melhores de lá. Ele representa o ideal de um artista voltado à infância, embora escreva para todas as gerações. Por isso encerro essa crônica com sua arte:
O poema que eu não fiz
Antônio Francisco
…E quando penso que vou iniciar meu trabalho, vejo um menino descalço na rua, sem agasalho. Aí eu perco outra vez, té, métrica, rima, hora, mês… e no labirinto profundo, do poço da minha mente, vou gritar novamente, no pé do ouvido do mundo: quebre o olho da ganância! Cale a boca do canhão! Aprenda a amar o próximo, abrindo a palma da mão.Percam este medo de amar e ao invés de engravidar, de ódio o ventre da terra, plantem nela amor e paz, para a terra não parir mais droga, arma, fome e guerra. E assim vivo batendo, nas teclas do mesmo tema, esperando uma brechinha, para escrever o meu poema…
Fonte: saibamais.jor.br
