A 13ª Conferência Nacional de Direitos Humanos produziu algo raro e profundamente necessário no Brasil contemporâneo: uma vitória política que nasce da dor, da persistência e da recusa em aceitar o esquecimento como destino. A priorização da proposta de criação e instalação de uma nova Comissão Nacional da Verdade (CNV), com recorte histórico ampliado e prazo mínimo de dez anos, não é apenas uma deliberação administrativa. É um marco. Um grito coletivo que afirma que a democracia brasileira não pode continuar assentada sobre cadáveres sem nome, arquivos fechados e pactos de silêncio.
Escrevo como presidenta do Comitê Estadual de Memória, Verdade e Justiça do Rio Grande do Norte, como integrante do Coletivo Nacional de Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça, mas, sobretudo, escrevo como filha de duas vítimas da ditadura civil-militar brasileira. Para nós, memória não é abstração acadêmica. É matéria viva. É ausência à mesa, é infância atravessada pela mentira de Estado, é a permanência da violência quando a verdade é negada.
A primeira Comissão Nacional da Verdade: conquistas e limites
A primeira Comissão Nacional da Verdade foi instalada em 2012, quase três décadas após o fim formal da ditadura. Seu nascimento já carregava as marcas do atraso brasileiro em enfrentar o próprio passado. Ainda assim, representou um passo histórico. Pela primeira vez, o Estado brasileiro reconheceu oficialmente que houve uma política sistemática de violações de direitos humanos, com prisões ilegais, tortura, assassinatos e desaparecimentos forçados.
O relatório final da CNV, entregue em 2014, identificou 434 mortos e desaparecidos políticos, nomeou perpetradores, reconheceu a responsabilidade institucional das Forças Armadas e recomendou medidas claras: responsabilização penal, reformas institucionais, abertura de arquivos, políticas de memória e educação. A CNV rompeu o discurso da “excepcionalidade” e afirmou o que as vítimas sempre souberam: não se tratou de excessos individuais, mas de um projeto de poder.
Mas seus limites também foram evidentes. O recorte temporal restrito, a ausência de poder coercitivo, o tempo exíguo de funcionamento e, sobretudo, a resistência explícita das Forças Armadas em abrir seus arquivos impediram que a verdade viesse à tona em sua plenitude. O resultado foi um relatório fundamental, porém inconcluso. Um ponto de partida, jamais um ponto final.
Por que uma nova CNV é imprescindível
A proposta priorizada na 13ª Conferência responde diretamente a essas lacunas históricas. Ao prever um recorte ampliado entre 1935 e 1990, a nova CNV reconhece que a violência de Estado no Brasil não começou em 1964 nem terminou com a posse de um governo civil. Ela atravessou o Estado Novo, a ditadura militar e contaminou a transição democrática, marcada por pactos de impunidade.
Mais do que isso: a nova Comissão propõe um prazo mínimo de dez anos, compatível com a dimensão do crime investigado. Genocídios, crimes contra a humanidade e desaparecimentos forçados não se apuram com pressa. Exigem método, profundidade, persistência e coragem política.
O acesso integral aos arquivos militares, civis e empresariais é outro eixo central. A ditadura não foi apenas militar: foi civil, empresarial e internacionalmente articulada. Sem abrir esses arquivos, o Brasil seguirá condenado à versão dos algozes.
É nesse ponto que o recorte ampliado se torna também profundamente pessoal. Casos de mortes apontadas pelos próprios agentes violadores de direitos humanos, como o ex-delegado do DOPS Cláudio Guerra, permanecem à margem do reconhecimento oficial. Meu pai, Glênio Sá, é uma dessas vítimas. Sua morte foi narrada por um agente do Estado, mas ainda assim o Estado insiste em negar a verdade. A nova CNV é a possibilidade concreta de romper essa violência continuada.
Um sistema para que a verdade não seja episódica
A segunda grande vitória da Conferência foi a aprovação da proposta de criação do Sistema Nacional de Memória, Verdade, Justiça e Reparação (SNMVJR). Ela responde a uma falha estrutural do Brasil: tratar a memória como evento, e não como política pública permanente.
O sistema propõe coordenação federal com autonomia técnica, participação paritária da sociedade civil e dos familiares, integração federativa, orçamento próprio e um Fundo Nacional alimentado inclusive por multas aplicadas a empresas que colaboraram com a ditadura. É uma inversão ética poderosa: quem lucrou com o autoritarismo deve financiar a memória e a reparação.
O SNMVJR articula ainda a transformação de centros de tortura em espaços de educação, a retirada de homenagens a torturadores, a identificação de sítios de consciência, investigações arqueológicas, equipes de antropologia forense, reparações psíquicas por meio da Clínica dos Testemunhos e a inserção obrigatória do estudo da ditadura na educação básica e superior.
Trata-se de um projeto de país. Um projeto que afirma que a democracia só se sustenta quando encara suas feridas.
Justiça de transição como horizonte democrático
A terceira proposta aprovada reforça esse caminho ao detalhar medidas concretas de justiça de transição, fortalecendo comitês locais e ações territoriais. Porque a violência da ditadura não foi homogênea: ela atingiu de forma brutal indígenas, camponeses, quilombolas, populações negras, trabalhadores urbanos e rurais. Reconhecer isso é também disputar a narrativa nacional.
Memória como compromisso com o futuro
A vitória na 13ª Conferência Nacional de Direitos Humanos não encerra uma luta, ela a inaugura em outro patamar. Sabemos que as forças do autoritarismo seguem organizadas, armadas de negacionismo e saudosas da violência. Justamente por isso, a memória é hoje um campo estratégico da disputa democrática.
Criar uma nova Comissão Nacional da Verdade é afirmar que o Brasil não aceita mais viver sob a tutela do silêncio. É dizer aos familiares, aos filhos e netos das vítimas que sua dor importa. É dizer às futuras gerações que a democracia não é um favor, mas uma construção diária.
A verdade não devolve os mortos. Mas devolve humanidade aos vivos. E, neste país marcado por tantas ausências, isso já é uma forma profunda de justiça.
Fonte: saibamais.jor.br
